Versão brasileira da Trilogia Millenium |
De BH
Fato é: Nós brasileiros não conhecemos quase nada da Suécia. Sabemos, é claro, que é um dos países mais desenvolvidos do mundo, pacífico, com educação de alta qualidade e níveis de violência baixíssimos, população educada e clima frio. Afora isso, conhecemos poucos aspectos que compõem a cultura e o dia-a-dia sueco, de um modo geral – por consequência, não é de se espantar nosso desconhecimento sobre sua produção literária. Os mais velhos se lembrarão de Pippi Meialonga, da escritora Astrid Lindgren, que talvez seja a obra sueca mais familiar aos brasileiros.
Difícil imaginar, portanto, que de um país tão desenvolvido e pacato venha um dos maiores Best-sellers de romance policial do século XXI, recheado de corrupção, assassinatos a sangue-frio, racismo, xenofobia, problemas sociais, tráfico humano e de drogas, e além de tudo ambientado na Suécia moderna – mas para a surpresa do mundo inteiro, foi exatamente isso que aconteceu.
Rooney Mara e Daniel Craig como Lisbeth Salander e Mikael Blomkvist na adaptação americana de David Fincher, 2011. |
A trilogia Millenium foi lançada em 2005, pouco tempo após a morte do autor, o jornalista Stieg Larsson. Na Suécia, foi um sucesso instantâneo (Estatísticas mostram que um entre quatro suecos já leram ao menos um livro da trilogia), adaptada para o cinema em uma também trilogia, de produção sueca, e é um fenômeno de vendas até hoje. Ao redor do mundo, não foi muito diferente. Angariou fãs em diversas partes do planeta e o primeiro livro da série, Os Homens que Não Amavam as Mulheres – em inglês, The Girl with the Dragon Tattoo – também ganhou versão cinematográfica americana, dirigida por David Fincher.
A história nos apresenta Mikael Blomkvist, jornalista e editor da revista Millenium, cuja carreira acabou de sofrer um duro golpe - após publicar um artigo acusando o magnata sueco Hans-Erik Wenneström de corrupção, tráfico de armas e lavagem de dinheiro, é acusado de difamação e condenado a pagar uma multa que irá abocanhar a maior parte de suas finanças, além de 3 meses de prisão. Blomkvist tem certeza de sua inocência, e sabe que foi vítima de uma cuidadosa armação, mas a mídia sueca não compartilha deste sentimento. Desacreditado, Mikael se retira da produção da revista para tentar colocar sua vida em ordem.
No meio deste cenário de desolação, entretanto, o jornalista recebe uma proposta de Henrik Vanger, dono das empresas Vanger, uma das maiores e mais respeitadas empresas familiares da Suécia. Henrik quer que Mikael investigue o assassinato de Harriet Vanger, sua sobrinha, que aconteceu quarenta anos antes. Todos os anos, em seu aniversário, o empresário recebe uma flor seca emoldurada em seu aniversário, tradição iniciada por Harriet na infância e perpetuada por seu assassino, ao longo de quarenta anos. Em troca de uma soma indecente de dinheiro, suficiente para colocar suas finanças nos eixos, e um material comprometedor contra Hans-Erik Wenneström, Vanger convence Mikael a começar a investigação.
Paralelamente, somos apresentados a Lisbeth Salander. A jovem de 23 anos não tem quase nenhuma habilidade social, mas é dona de um Q.I altíssimo e memória fotográfica, alem de ser a melhor hacker da Suécia. Lisbeth é pequena, magra e se assemelharia a uma garota de 12 anos se não fosse o estilo agressivo de seus piercings, tatuagens, roupas e cabelos. Contratada por Vanger para fazer uma investigação preliminar sobre Blomkvist, ela é envolvida na investigação sobre Harriet quando Mikael descobre que o assassinato da jovem está ligado a uma série de assassinatos de cunho religioso ocorridos na Suécia entre as décadas de 40 e 60, e pede por sua ajuda. A partir daí, Lisbeth e Mikael passam a trabalhar juntos para descobrir o assassino, que está mais perto do que se imagina.
Noomi Rapace como Lisbeth Salander, na versão sueca de Os Homens que Não Amavam as Mulheres. |
Stieg Larsson não poupa nenhum detalhe. Sua narrativa crua, realista e absurdamente detalhista preocupa-se em fornecer o máximo de informações sobre os personagens, procurando criar um panorama completo. Ao longo da narrativa, somos apresentados a diversos personagens, todos complexos e muito bem construídos, e temos histórias paralelas que se juntam e se separam dentro de uma história maior. Por este motivo, seu estilo de escrita dá a impressão de ser uma transcrição, um relato de uma história real, e a brutalidade das situações forçam os personagens ao seu limite, o que torna a trilogia muito mais eletrizante.
Ativista político desde jovem, Larsson não possui papas na língua e não se acanha em tratar de temas considerados polêmicos ou tabus. Assuntos como corrupção, abuso sexual, misoginia, jogos de poder, um estado que atende apenas interesses privados, tráfico e lavagem de dinheiro são trabalhados profundamente, e a narrativa escancara um lado obscuro da Suécia, bem diferente do que estamos acostumados – racista, machista, corrupta, apática, cega para questões sociais, preconceituosa e hipócrita, mas ao mesmo tempo, fascinante.
Morto em 2004, aos 50 anos, vítima de um ataque cardíaco, Stieg Larsson sempre quis ser escritor, mas seu primeiro contato com a literatura não foi com o romance policial – foi com a ficção científica. Publicou vários fanzines quando jovem e era figurinha carimbada nas convenções de sci-fi da Suécia. Ao ficar mais velho, entretanto, identificou-se cada vez mais com as questões humanitárias e tornou-se um dos maiores ativistas de direitos humanos do país. Fundou a revista Expo em 2002, onde publicava artigos anti-racistas e denunciava violações aos direitos humanos na Suécia. Angariou vários inimigos e recebia constantes ameaças de morte. Planejava escrever pelo menos 10 livros da série – quando morreu, deixou apenas a trilogia e um rascunho de um quarto livro, além de resumos e delimitações dos outros seis.
A trilogia Millenium não é para os cheios de não-me-toques, nem para aqueles que se ofendem por pouco- mas para aqueles que gostam de uma história policial consistente, recheada de suspense e desdobramentos inesperados, a série é uma das melhores do gênero, apresentando crítica social e genialidade literária numa mesma narrativa. Larsson se foi cedo, mas deixou uma obra prima que vai cativar até os mais céticos. Acredite – uma vez que se é puxado para o universo de Lisbeth Salander e Mikael Blomkvist, é impossível sair.
*Luisa Santos é estudante do 3 ano do curso técnico em Equipamentos Biomédicos do CEFET/MG, tem o blog Estrelete e colabora com fóton Blog.
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