sábado, 29 de setembro de 2012

Educação tecnológica: Fim do preconceito


Por James William Goodwin Junior*
No Estado de Minas de 29/09/2012 04:00 [versão impressa, p. 12-17]

Abordar o tema da educação profissional no Brasil é refletir sobre o lugar do trabalho em nossa sociedade, historicamente dividido entre as tarefas relacionadas ao trabalho intelectual, ao domínio da cultura letrada e dos serviços burocrático-administrativos, e aquelas atividades cotidianas, dependentes da força física e, muitas vezes, exaustivas. A cultura legada pelo sistema escravista associava a liberdade e a dignidade humanas ao ócio. Trabalhar para garantir a sobrevivência era, conforme expressão do período colonial, um "defeito mecânico" que aproximava homens e mulheres livres dos cativos, todos com as mãos calejadas.


O longo processo de desmanche da escravidão e o crescente desenvolvimento das relações industrial-capitalistas forçaram uma reformulação do mundo do trabalho. A proclamação da República deu força a ideias como cidadania, identidade nacional, progresso econômico e moral, democracia. Para as elites nacionais, o futuro do país dependeria da oferta de mão de obra regular nas áreas rurais e do enquadramento dos trabalhadores urbanos, especialmente nas novas fábricas e atividades que surgiam.

Também era fundamental incorporar os marginalizados, os pobres, trabalhadores ou desocupados à nova sociedade que se pretendia construir. Vale lembrar que às elites político-econômicas interessava que essa inclusão se desse sem alterar profundamente as relações de poder até então predominantes.

A educação profissional foi tratada como resposta certeira a esses problemas, gerando, inclusive, a primeira ação coordenada do governo federal na área educacional: a criação das Escolas de Aprendizes Artífices, em 1909, pelo então presidente Nilo Peçanha. A educação do trabalhador teria efeitos múltiplos: os pobres não se tornariam desocupados e potencialmente criminosos; as crianças cujas famílias não pudessem oferecer suporte teriam formação profissional; a mão de obra para as novas demandas que surgiam seria qualificada. Especialmente no campo, a educação profissional poderia superar o atraso técnico e aumentar a produtividade da principal atividade econômica do país.

Percebe-se, aqui, um duplo viés: ao mesmo tempo em que o ensino profissionalizante propunha uma modernização de procedimentos e técnicas, não alterava a dicotomia fundamental da educação brasileira. Havia quem defendesse uma educação voltada às classes abastadas, centrada no conhecimento acadêmico, e outra para os que, no início do século 20, eram considerados os "desfavorecidos da fortuna", como dizia o decreto de criação da Escola de Aprendizes Artífices. Para estes, a cidadania não seria um direito natural, mas o resultado de sua incorporação pela educação no trabalho, pelo trabalho e para o trabalho.

As mudanças vividas pela sociedade brasileira ao longo do século 20 continuaram a moldar a educação profissional. Com as políticas de Estado visando fortalecer a indústria, em 1942, as antigas escolas de artífices foram transformadas em escolas técnicas, formadoras de trabalhadores qualificados para atender às exigências geradas pela intensa industrialização do período. Abandonava-se uma formação mais individualizada e artesanal em prol do preparo dos trabalhadores para operar as máquinas que eram instaladas nas fábricas, que se multiplicavam. No mesmo sentido foi criado o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), preparando mão de obra para atender às necessidades da indústria; e em 1946, o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), voltado para as necessidades do comércio.

Também como resposta às modificações no setor produtivo, em 1978 as escolas técnicas se tornaram Centros Federais de Educação Tecnológica, os atuais Cefets. O governo federal ampliava, assim, o horizonte da formação profissional, pois já não era suficiente capacitar técnicos para o mercado de trabalho. Era preciso preparar também engenheiros, com investimento no ensino de nível superior, visando à produção de tecnologia. Nas últimas décadas, os Cefets buscaram entender as demandas geradas pela sociedade e responder a elas, bem como à velocidade e magnitude das transformações tecnológicas.

No início do século 21, a educação tecnológica passou a receber tratamento prioritário nos discursos e programas do governo federal. O impulso econômico experimentado pelo país e as oportunidades de crescimento revelaram o lapso existente entre o potencial de desenvolvimento brasileiro e suas bases de sustentação. A histórica resistência do setor privado em valorizar e qualificar os trabalhadores, associada a políticas públicas insuficientes no campo da formação profissional, cobra agora seu preço. Tornou-se corrente a expressão "apagão tecnológico" para designar a ausência de trabalhadores qualificados para lidar com as tecnologias atuais, da informática aos novos métodos de construção civil. Criou-se um aparente paradoxo: embora haja vagas abertas no mercado de trabalho, há muitos desempregados que não estão aptos a ocupá-las.

Assim, o governo federal implementou uma série de programas e ações, como a criação dos Institutos Federais de Educação Tecnológica e o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec). Tais ações incentivaram medidas similares em níveis estadual e municipal. Todas têm em comum o objetivo de fortalecer e ampliar o leque de opções para que os trabalhadores brasileiros se qualifiquem e possam atender, no menor tempo possível, às demandas do mercado de trabalho. O que permitiria, por sua vez, aproveitar as oportunidades conjunturais para o crescimento e o desenvolvimento do país. Também o Sistema S (Senai, Senac, Sesi etc.) recebeu aporte de recursos e apoio governamental para desempenhar essa tarefa.

Todo esse esforço visa atender à crescente demanda por profissionais de nível técnico, que não para de crescer. Dados do Censo da Educação Básica, de 2011, apontam que o total de alunos matriculados nesses cursos em todo o país passou de 780 mil em 2007 para 1,25 milhão em 2011, um aumento de 65% entre um ano e outro.

Não obstante alguns aspectos polêmicos, vale destacar que a educação tecnológica passou a compor a agenda do governo, com uma política pública definida. Todavia, boa parte dessa política ainda está voltada para a formação rápida de mão de obra em nível técnico para atender necessidades imediatas do mercado de trabalho. Isso é necessário, mas não é suficiente para sustentar o desenvolvimento nacional a longo prazo. Mais do que mão de obra apta a utilizar técnicas aprendidas, serão necessários trabalhadores qualificados a entender a tecnologia, criticá-la, científica e socialmente, e modificá-la quando necessário. Mais do que ensino técnico, precisamos de educação tecnológica.

Nessa direção caminha o Cefet-MG. Há décadas a comunidade cefetiana vem construindo um novo modelo institucional para a educação profissional. O investimento na formação de engenheiros; a atuação cada vez mais ampla e diversificada no ensino superior; os programas de pós-graduação; as políticas de qualificação do corpo docente, constituindo um vasto corpo de mestres e doutores: todas essas são ações estruturantes de um modelo educacional verticalizado e integrado, no qual a tecnologia não é apenas ensinada e transmitida, mas construída criticamente, a fim de atender às novas demandas do mercado de trabalho. E com um objetivo maior ainda, o de participar do processo produtivo dando respostas às necessidades da sociedade brasileira.

A base sobre a qual se construiu todo esse processo é a da educação profissional e técnica de nível médio. Engenheiros e doutores são necessários ao progresso do país, mas também técnicos bem preparados são essenciais para garantir a qualidade do planejamento, coordenação, execução e avaliação do trabalho a ser realizado. Mais do que isso, técnicos com formação sólida e ampla que possam dialogar com a produção científico-tecnológica, avaliá-la criticamente e propor mudanças e melhorias. Para atingir esses objetivos, é necessário investimento, tempo, equipamento e pessoal, uma batalha permanente pela valorização das instituições de ensino público.

A formação de um técnico com as características almejadas exige transpor antigas e preconceituosas divisões entre o pensar e o fazer. Exige romper barreiras entre a sala de aula, o laboratório, a fábrica e a rua. Por isso temos investido em programas como as bolsas de iniciação científica para alunos de nível médio, hoje o maior do Brasil, bem como em programas de extensão e intercâmbio envolvendo um número cada vez maior de alunos.

Uma educação tecnológica moderna exige que a prática conviva com a reflexão, a integração entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, entre a mão e a mente. Uma educação tecnológica ampla deve envolver diferentes níveis do ensino e integrar diversas áreas do conhecimento. Deve oferecer uma formação crítica, que prepare os alunos para atender ao mercado de trabalho, para atuarem como cidadãos capacitados e responsáveis, para responderem às carências do mundo contemporâneo. Uma educação tecnológica nesses moldes devolve à sociedade o seu investimento de forma mais perene e segura, e certamente ajudará a construir um futuro melhor para nosso país.

*James William Goodwin Junior é doutor em história social e diretor de Educação Profissional e Tecnológica do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG)

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