quinta-feira, 14 de março de 2013

O homem que dança: vivenciando no corpo, o acordo e o desacordo.


Leandro Ferreira em cena.
Por Leandro Ferreira Pires*
De Curvelo - MG

Dançando e dançando eu estava com os olhos fechados imaginando um mundo diferente. Quando abro meus olhos, me deparo com os olhares das pessoas cheios de estranhezas, em minha direção. A dança para mim é um refúgio, uma libertação. Na verdade, uma investigação em que eu tenho que descobrir os limites e possibilidades do meu corpo. Um trabalho de sincronia entre corpo e mente, uma confiança no que eu vou ouvir, produzir e reproduzir. Sendo um homem que dança me sinto, às vezes, constrangido pelos olhares e comentários preconceituosos que algumas pessoas fazem. Contudo, é maravilhoso realizar algo que me faça sentir tão bem, escutar um simples elogio ou poder ver um espetáculo pronto depois de exaustivas tentativas.


Quando eu era mais novo, sempre tinha medo e vergonha de liberar os movimentos com meu corpo. Preocupava-me principalmente com o que as pessoas diriam, tendo por base o senso comum. Hoje sinto que quando estou dançando é que mostro quem sou eu, minha dança interior, minha verdadeira identidade. Danço como se estivesse em outro mundo, um mundo surreal. Libero os movimentos simbolizando a  minha liberdade. A dança é a linguagem que expressa meus sentimentos através de movimentos.  

Antes mesmo de a humanidade usar a linguagem oral,  os indivíduos dançavam, usando a linguagem gestual e expressões faciais. Dançava-se para exprimir emoções, em rituais para deuses ou para distrair. Entretanto, com o tempo as coisas foram mudando, a linguagem gestual veio se restringindo e instituiu-se a diferença entre o que era dança e linguagem gestual.  Assim, foram criados ritmos e esses ritmos foram sendo rotulados. Como linguagem, a dança veio reproduzindo o papel do homem e da mulher na sociedade em
diferentes tempos e culturas.

A dança, enquanto arte, é vista aos olhos do senso comum, como algo sensível, leve e suave, enquanto a visão sobre o que é masculino está relacionada a atitude, força e brutalidade. Criando-se assim, um desacordo entre o masculino e a dança. Porém para dançar é preciso equilíbrio entre leve e forte, livre e limitado. Para dançar, a mente tem que estar em equilíbrio com o corpo para que se possa absorver o áudio e transformá-lo em movimentos. É como pensar: escutar a música, criar na mente e produzir movimentos com o corpo. Pensar e dançar lhe deixa cara a cara com o risco, sempre em constantes mudanças, fluxos inventivos e instabilidade. As crianças dançam desenfreadas, sem se importar com ritmo ou rótulos, o que
importa é que estão dançando, pensando e exercitando. E assim elas absorvem a música e liberam os movimentos.

Nas cortes da Itália e da França surgiu o balé, e assim ao longo dos anos veio dando origem a outros estilos. E estes outros estilos sempre deixando bem clara a presença forte, galante e elegante do homem, que ainda sustentava a mulher para que ela pudesse mostrar toda sua leveza e graciosidade.  Sempre que um espectador estava assistindo a uma coreografia, ou peça de teatro, procurava um dançarino ou ator que admirava ou mesmo que pudesse espelhar. A partir do momento em que o homem espectador procurava se identificar com a imagem do dançarino, isto provocava um incômodo dentro do homem espectador, pois
o homem dançarino, por mais que realizasse passos de dança diferentes da mulher, apresentava suavidade. Dessa forma, houve um desacordo entre o homem espectador e o homem dançarino. Surge, desde então, um choque de identidades que levou à discriminação do homem dançarino.

Temos uma identidade, que está em criação, dúvida e uma série de negações. Antes de nascermos, nossos pais e a sociedade vêm produzindo uma identidade para cada um de nós. Entretanto, com o tempo, em diálogo ou desacordo com estas construções sociais, o sujeito vai moldando sua própria identidade. E é construindo identidades como algo natural que a sociedade define os papéis de gênero e espera que os sujeitos se adequem a eles. Assim, a sociedade, organizada a partir desta dicotomia masculino-feminino, define as funções, atuações e possibilidades corporais. Crianças aprendem na escola, as coisas que são de
meninas e as coisas que são de meninos. Por exemplo, rosa é cor de meninas e azul é cor de meninos. Esse é apenas um dos rótulos impostos pela sociedade. E como nas cores temos os rótulos, na dança não é diferente. Se um homem vestir rosa ou dançar balé e uma mulher jogar futebol, os olhares de estranheza, com certeza, não deixarão de fitá-los.  

O homem que dança, muitas vezes, esconde talentos, prende movimentos por medo e vergonha do que a sociedade pode dizer. E daí? Tem  alguns homens que tem uma melhor desenvoltura para dançar do que algumas mulheres. E algumas mulheres uma melhor desenvoltura para futebol do que alguns homens. Mas, o preconceito é tão grande que afasta os homens da dança. Procurei informações na minha escola e entre os 319 alunos, onde a maioria é de homens, temos um grupo de dança que desenvolve vários estilos, com dez
estudantes. Destes estudantes, nove são mulheres e um único homem. E até mesmo em outras escolas ou academias de dança, o número de mulheres sempre é maior do que o número de homens.

Apesar do quadro que se apresenta, outras possibilidades têm surgido. Novos ritmos de músicas e coreografias adaptaram-se ao longo do tempo. Com o desenvolvimento da dança foram favorecendo movimentos comuns em ambos os sexos, possibilitando a desconstrução de paradigmas baseados na divisão masculino-feminino. Não precisaria da presença masculina para sustentar a mulher para que assim ela pudesse mostrar sua graciosidade. Houve uma neutralização dos gêneros, dançariam agora em grupos que nos quais homens e mulheres fariam os mesmos movimentos tanto em sincronia quanto individualmente.
A dança pós-moderna traz mulheres que realizam movimentos masculinos e vice versa. Assim estes foram trabalhados com o coletivo para que o peso corporal da coreografia fosse responsabilidade de todos os dançarinos, eliminando os níveis de ativo e passivo. E quanto ao espectador e o dançarino, o dançarino entraria nos palcos sem preocupar-se em apresentar-se para o espectador e agora entraria nos palcos somente com a preocupação da realização da coreografia.

Alguns coreógrafos recriaram os aspectos considerados da masculinidade como características brutais, sexuais e agressivas, destruindo imagens positivas, tanto da heterossexualidade como da homossexualidade. Como por exemplo, uma coreografia em que um homem dança com uma boneca erótica inflável, trocando carícias e toques. Mas também, poderíamos ter uma coreografia em que uma dupla de  dançarinos começasse a dança com dois elásticos e terminassem colados por um só elástico. Então quando o espectador procurar se identificar com a coreografia, nestes casos, ele terá uma facilidade em se identificar-se sendo ele heterossexual ou homossexual.

Apesar de todas essas desconstruções e recriações,  ainda temos olhares cheios de estranhezas para o homem que dança. Com o tempo, os homens vão ocupando seu espaço nos palcos, procurando ser valorizados pela sua arte. Espera-se que a sociedade compreenda a diversidade de identidades. As escolas e todo sistema educacional pode contribuir nesta empreitada. Ao invés de reforçar a ideia de uma identidade pronta e de papéis moldados, a instituição escolar é um local privilegiado para ampliar as possibilidades de vivências e convivências dos estudantes, concretizando uma educação para a diversidade. O homem que
dança não deveria ter vergonha e nem medo de dançar.

Dançando e dançando eu estou com os olhos fechados, imaginando um mundo diferente, em que a diferença é respeitada, em que a dança é uma linguagem artística vivida e vivenciada por todos e todas. Quando abrir meus olhos, quero me deparar com os olhares das pessoas cheios de admiração e respeito em minha direção. Aquela mesma admiração e aquele mesmo respeito que tenho por elas.

*Leandro Ferreira Pires é ator, dançarino e estudante do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais - CEFET/MG em Curvelo - MG e com este texto recebeu o 3 lugar no 8 Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero do Centro Nacional de Desenvolvimento Cintífico e Tecnológico - CNPq. O estudante foi orientado pelo professor Adriano Gonçalves.

Um comentário:

Deuzana disse...

Lindo texto! Você descreve com muita clareza o que vai em múltiplas almas, mostra que indiferente do gênero o individuo é dotado de sensibilidade, mostra que os grupos através da história tem criado possibilidades para o todo, mostra que a escola como espaço de sensibilização pode modificar conceitos preestabelecidos. Tenho muito orgulho de você!!!!!! Parabéns.

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