segunda-feira, 18 de abril de 2011

Simulação explica por que a Terra não colidiu com o Sol

Por Marcos Pivetta

A situação era desconcertante. Nas duas últimas décadas, toda vez que um astrofísico fazia uma simulação computacional sobre a origem do sistema solar o resultado era, invariavelmente, o mesmo: a Terra deveria ter desaparecido há muito tempo. Cerca de 100 mil anos depois de sua gênese, antes mesmo de ter se formado por completo, o planeta deveria ter entrado numa espiral suicida que o faria colidir com o Sol.



De acordo com os modelos tradicionais que tentam explicar o surgimento de sistemas planetários, a Terra seria mais um corpo celeste destinado a trombar com a estrela-mãe. Claro que nada disso ocorreu e o impacto fatal nunca houve. Mas só recentemente alguns pesquisadores formularam uma teoria alternativa capaz de explicar por que o planeta não foi engolido pelo astro-rei. “Conseguimos a primeira simulação em que a Terra não ‘cai’ no Sol”, afirma o astrofísico Wladimir Lyra, um brasileiro de 29 anos que faz pós-doutorado no Museu Americano de História Natural (AMNH, na sigla em inglês) de Nova York. O pesquisador foi o responsável por abastecer de dados e conduzir o ensaio digital que, nos computadores, mudou o curso da história evolutiva da Terra.

Como os demais planetas de nosso sistema, a Terra surgiu a partir do acúmulo de poeira e gás do disco protoplanetário, nuvem que envolvia o Sol logo após essa estrela ter se formado, há cerca de 4,6 bilhões de anos. Hoje há quase um consenso entre os cientistas de que os planetas do sistema solar – e também os mais de 500 mundos extrassolares até agora descobertos (ver quadro na página 53) – não se originaram no mesmo lugar em que se encontram atualmente. Nasceram num ponto do disco e, depois de uma série de interações gravitacionais com o gás e os objetos do sistema, migraram para outra região. Ali encontraram uma órbita de equilíbrio em torno do Sol e se estabeleceram.

Nos últimos 20 anos, os modelos computacionais adotados por vários grupos de astrofísicos partiam do princípio de que, embora a temperatura ao longo de todo o disco variasse (quanto mais próximo do Sol, mais quente), qualquer flutuação térmica sofrida pelo gás num determinado ponto era instantaneamente irradiada para o ambiente externo. Na prática, isso equivalia a dizer que o eventual excesso de calor num lugar específico era transferido para o espaço e a temperatura em cada ponto do disco se mantinha sempre constante. As consequências de tal forma de pensar, que é usada sem problemas no estudo de galáxias, eram catastróficas nas simulações sobre a evolução do sistema solar: não só a Terra, mas todos os planetas trombavam com o Sol. “Quando introduzimos flutuações locais de temperatura no disco, os planetas começaram a migrar para órbitas mais afastadas do Sol”, diz Lyra, que foi o primeiro autor de um artigo publicado na edição de 1o de junho de 2010 do Astrophysical Journal Letters (ApJL) com os resultados das novas simulações.

De acordo com os pesquisadores, o novo modelo prevê a evaporação total da nuvem protoplanetária após 5 milhões de anos e é capaz de explicar a migração de planetas com massa até 40 vezes maior do que a da Terra. “Durante seu processo de evolução, o disco perde gás e fica com uma densidade tão baixa a ponto de não conseguir mais mover os planetas, que acabam então entrando em sua nova órbita”, explica o astrofísico Mordecai-Mark Mac Low, coordenador do trabalho do brasileiro no AMNH e coautor do estudo.

As ideias centrais que permitiram abastecer a simulação computacional derivam em grande medida de trabalhos recentes de outro astrofísico da nova geração. Desde 2006, o holandês Sijme-Jan Paardekooper, de 31 anos, que hoje faz pós-doutorado no Departamento de Matemática Aplicada e Física Teórica da Universidade de Cambridge, Inglaterra, publica estudos sobre os possíveis efeitos decorrentes de variações de temperatura no gás de um disco protoplanetário. “Sempre procuramos o modelo teórico mais simples que possa explicar um fenômeno físico”, diz Paardekooper, que também assinou o artigo na ApJL.
A questão-chave é entender como a trajetória dos embriões de planetas podia mudar de curso numa simulação em função de alterações térmicas em pontos específicos da nuvem de gás. Antes disso, é preciso ter em mente que a órbita final de um planeta em formação é determinada por uma série de variáveis, sobretudo as interações gravitacionais com os demais componentes do sistema (a estrela-mãe, outros planetas e o disco de gás). “Alguns fatores favorecem a ocorrência de uma migração na direção do Sol e outros para longe dele”, comenta Paardekooper. Por didatismo, a explicação que se segue aborda o mecanismo central que, segundo as simulações de Lyra e seus colegas, tirou a Terra da rota de colisão com o Sol.

Em um disco protoplanetário, a força gravitacional de um planeta modifica a órbita original do gás que o circunda. Em resposta a esse fenômeno, o planeta também altera sua órbita, só que na direção oposta da que o gás foi deslocado. Até aí nada de novo. Tudo isso é previsto pela lei da ação e da reação de Isaac Newton. O pulo do gato vem agora. De acordo com as novas simulações, ao incorporar eventuais variações locais de temperatura no disco protoplanetário, os pesquisadores perceberam que o gás se torna mais denso nas zonas mais próximas ao Sol e é capaz de deslocar a Terra para uma órbita segura.

Terras troianas – Antes do trabalho sobre por que a Terra não migrou para dentro do Sol, Lyra produziu outra simulação computacional com discos protoplanetários que também gerou grande interesse. Num estudo publicado com destaque de capa numa das edições de janeiro de 2009 da revista científica Astronomy & Astrophysics, o brasileiro e outros três autores divulgaram cálculos e equações que indicam a possibilidade de haver mundos rochosos, de massa semelhante à da Terra, escondidos bem “nos ombros” de exoplanetas gigantes e gasosos. Seriam as Terras troianas. Objetos que seguem a mesma órbita de um corpo celeste muito maior, sem no entanto nunca se chocarem com esse avantajado companheiro de viagem, são denominados troianos. Eles se situam em duas regiões, nos chamados pontos lagrangianos da órbita, 60 graus antes e 60 graus depois do local em que se encontra o objeto maior. Os pontos são assim chamados porque foram propostos pelo matemático e astrônomo ítalo-francês Joseph Louis Lagrange (1736-1813).

Não faltam objetos celestes que carreguem o adjetivo troiano. O gigante gasoso Júpiter gira em torno do Sol em companhia de dois grupos de rochas celestes situados nos pontos lagrangianos, os asteroides troianos (de cujo nome veio a inspiração para denominar o fenômeno) e os asteroides gregos. Saturno, Marte e Netuno também são escoltados por objetos troianos. Mas nunca foi encontrado um planeta troiano, nem mesmo fora do sistema solar, onde foram descobertos exoplanetas orbitando mais de 420 estrelas. “As simulações do Wladimir mostram que precisamos dos seguintes ingredientes para que haja Terras troianas: planetas gasosos gigantes, como Júpiter, têm de se formar rapidamente num disco protoplanetário cheio de seixos e pedregulhos”, afirma o astrofísico dinamarquês Anders Johansen, de 34 anos, da Universidade Lund, Suécia, um dos coautores do estudo com Lyra. “À medida que se concentram nos pontos lagrangianos, os sólidos originam um corpo tão denso a ponto de formar planetas similares ao nosso.”

Ao menos esse foi o resultado do modelo computacional rodado pelo brasileiro. Na simulação, os seixos e os pedregulhos que se juntaram para gerar Terras troianas virtuais tinham entre 1 centímetro e 1 metro. “Começamos o experimento com objetos menores”, conta Lyra. “Dessa forma, conseguimos resolver a hidrodinâmica do gás, a força de arrasto nas partículas e sua atração gravitacional conjunta.” Os cientistas sabem que diminutos grãos de poeira se juntam facilmente em discos protoplanetários, mas a manutenção do processo se torna incerta à medida que os corpos sólidos ficam maiores. Ainda assim, se os cálculos dos astrofísicos estiverem corretos, a possibilidade de haver Terras troianas na vizinhança de grandes exoplanetas gasosos é real. Faltaria apenas o homem ter meios de detectá-las.

Baco em vez de HD 128311 b

Não são nomes de planetas. São placas de carros. Assim Wladimir Lyra define a terminologia empregada para se referir aos mais de 500 exoplanetas, mundos desabitados localizados fora do sistema solar, descobertos desde outubro de 1995. Até agora, a regra tem sido chamá-los com o nome da estrela em torno da qual orbitam acrescido de mais uma letra (b, c, d e assim por diante). Três planetas giram, por exemplo, ao redor de uma estrela da constelação de Virgem, o pulsar PSR 1257+12 (ilustração acima). Na literatura científica, são conhecidos como PSR 1257+12 b, PSR 1257+12 c e PSR 1257+12 d. Lyra propõe batizá-los com nomes da mitologia greco-romana associados à constelação da estrela. O trio de planetas seria então denominado Sísifo, Íxion e Tântalo.

Não se trata de brincadeira. O brasileiro escreveu uma proposta formal, com nomes para mais de 400 exoplanetas, e a submeteu à União Astronômica Internacional (IAU, na sigla em inglês), órgão que trata desse tipo de assunto. A ideia não foi aceita. Disseram que os cientistas usam a sopa de letras e números para se referir aos planetas sem qualquer problema. “Eles se esquecem de que os astrofísicos também fizeram parte um dia do público em geral”, diz Lyra. “Com 6 anos de idade, fiquei fascinado pela ideia de que havia outros mundos como a Terra e passava dias decorando nomes de satélites como a Lua.” Lyra ainda não desistiu da proposta e vai reapresentá-la à IAU.

> Artigos científicos

1. LYRA, W. et al. Orbital migration of low-mass planets in evolutionary radiative models: Avoiding catastrophic infall. Astrophysical Journal Letters. v. 715, n. 2, p. L68-L73. 1º jun. 2010.
2. LYRA, W. et al. Standing on the shoulders of giants – Trojan Earths and vortex trapping in low-mass selfgravitating protoplanetary disks of gas and solids. Astronomy & Astrophysics. v. 493, n. 3, p. 1.125-39. jan. 2009.

fonte: Revista Pesquisa FAPESP

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