segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

A escuridão da noite e o universo em que vivemos

Por Domingos Sávio de Lima Soares*
Publicado no site do autor
13 de março de 2008
Semanalmente republicaremos no fóton a Série o Reino das Galáxias.




Por que o céu é escuro à noite? O que este simples fato nos ensina sobre o universo em que vivemos?

"-- Ora, o céu é escuro à noite porque o Sol está iluminando o outro lado da Terra! O que isto tem a ver com a totalidade do universo em que vivemos?", alguém poderia muito apropriadamente argumentar.


Mas, se o universo é infinito e possui infinitas estrelas e galáxias, haverá certamente uma estrela em qualquer direção para a qual olharmos. A área que o Sol ocupa no céu é 180.000 mil vezes menor que a área de todo o céu. Desta forma deveríamos esperar que o céu brilhasse com a intensidade de 180.000 sóis, mesmo à noite! Seria impossível a nossa vida no interior de tão extraordinária fornalha!

Sendo assim torna-se perfeitamente razoável a questão: "-- Por que o céu, num universo infinito em extensão e com infinitas estrelas, é escuro à noite?".

A escuridão do céu noturno, nos termos do parágrafo anterior, é conhecida na literatura científica como o "paradoxo de Olbers". Este nome deve-se ao médico e astrônomo alemão Heinrich Olbers (1758-1840), que em 1823 chamou a atenção para a questão, e apresentou uma possível solução -- que logo se revelou falha.

Olbers argumentou que a luz das estrelas distantes era absorvida pela matéria interestelar e que, portanto, o céu noturno não deveria brilhar tão intensamente como o disco solar. Esta interpretação é falha porque o meio interestelar, com o passar do tempo, torna-se-ia tão quente que passaria brilhar tão intensamente quanto um disco estelar! Toda a radiação que sobre o meio interestelar incidisse seria reemitida.

O problema é mais antigo, no entanto. Não foi Olbers o primeiro a levantar a questão. Merece menção o grande astrônomo Johannes Kepler (1571-1630), provavelmente o primeiro a propor este problema. Galileu Galilei (1564-1642), o grande astrônomo italiano, apontou, pela primeira vez, a recém-inventada luneta para o céu, em 1609. Entre outras grandes descobertas, ele logo verificou que a Via Láctea era na verdade constituída por um grande número de estrelas. Kepler, que acreditava num universo finito, argumentou, então, que a escuridão do céu noturno era uma evidência de que ele estava com a razão, isto é, o universo era de fato finito. O número de estrelas visíveis na Via Láctea não era suficiente para tornar o céu noturno brilhante como a superfície do Sol. Veremos a seguir que também Kepler estava enganado. A solução do "paradoxo de Olbers" não exclui a possibilidade de um universo infinito.


Imagem obtida pelo Telescópio Espacial Hubble de uma região do aglomerado globular Messier 4. O céu não é totalmente recoberto por estrelas, mesmo nesta região tão densamente povoada. (Crédito: NASA e H. Richer/Universidade da Colúmbia Britânica, Canadá)

Neste ponto da discussão é bastante útil a utilização de uma analogia. Suponhamos um observador no meio de uma extensa floresta. Existem muitas árvores, distribuidas mais ou menos uniformemente, por todo o lado. Suponhamos ainda que cada árvore possui um diâmetro médio igual a "d" -- 20 cm por exemplo. E que as árvores estejam separadas umas das outras por uma distância média "L" -- 2 metros, por exemplo. Cada árvore ocupará, portanto, uma área média total "A", igual a L vezes L, o que no nosso exemplo corresponderá a 4 metros quadrados. É relativamente fácil mostrar, teoricamente, que o observador não conseguirá enxergar nada além de uma distância "D" igual a A/d. A sua linha de visão sempre encontrará um tronco de árvore, se a floresta possuir uma extensão maior do que D.


Teremos, portanto, em nosso exemplo acima, que, além de uma distância de 4/0,20=20 metros, a nossa visão será obstruída pelo que poderemos chamar de um "muro" de troncos de árvores. Esta distância é chamada de "distância de recobrimento", ou, "limite de fundo". A previsão teórica pode facilmente ser verificada numa floresta de verdade! E funciona!


O resultado D=A/d é fisicamente bastante razoável: se a área média ocupada por uma árvore é pequena, intuitivamente, percebemos que a distância de recobrimento deve ser pequena também -- a floresta é muito densa; intuitivamente, também, percebemos que, se os troncos das árvores forem muito grossos, será menor a distância de recobrimento. Em linguagem matemática, dizemos que a distância D é diretamente proporcional à área ocupada por uma árvore e inversamente proporcional ao diâmetro da árvore.




Esta floresta não é grande o suficiente para que vejamos um "muro" de troncos ao fundo. Podemos discernir claramente faixas do céu. Se a floresta fosse mais densamente povoada de árvores e se os troncos fossem mais largos, a visão do céu de fundo poderia, eventualmente, ficar completamente bloqueada. (Crédito: Roman Zakharii)



O que isto tem a ver com a solução de nosso problema? Vamos ver.


No caso do cosmos, temos ao invés de uma área "A", um volume "V" médio, ocupada por uma estrela -- ou, uma galáxia, o que não faz diferença para o argumento. Cada estrela apresenta para o observador um disco de área média "s". Podemos então calcular a "distância de recobrimento" para este caso também. E que representará a distância na qual veríamos um céu recoberto, com a intensidade luminosa do disco solar. Esta distância vale, de forma análoga ao exemplo da floresta, V/s. Em números, o que significa isto?


Podemos fazer um cálculo tentativo utilizando a Via Láctea como representante de todo o universo. Uma estrela, na vizinhança do Sol, ocupa um volume médio de 100 anos-luz cúbicos, que é a grandeza "V" em nossa equação. Consideremos o disco solar, para o qual conhecemos "s", como representante de todos os discos estelares, e obteremos, então, para a distância de recobrimento, a imensa distância de 6.000 trilhões de anos-luz! A Via Láctea possui um diâmetro de 100.000 anos-luz. Isto significa que, considerando apenas a Via Láctea, não existem estrelas suficientes para o recobrimento do céu com radiação estelar.


E se considerarmos todo o universo? A distância de recobrimento será muito maior pois as galáxias -- o "lar" das estrelas estão separadas por distâncias imensas.


O inglês Edward Harrison (1919-2007), que foi professor emérito de Física e Astronomia da Unversidade de Massachusetts, nos Estados Unidos, foi o responsável pela apresentação da solução definitiva do enigma da escuridão do céu noturno.


Em um notável livro, intitulado "A escuridão da noite: um enigma do universo", escrito em 1987 e publicado em português, em 1995, pela Jorge Zahar Editor Ltda., ele apresenta todos os detalhes históricos do problema, e discute as soluções propostas -- um total de 15! A décima quinta é a solução que ele apresenta, e, a definitiva. A sua solução representa uma síntese do que há de correto em algumas das soluções apresentadas.


Entre os proponentes das soluções para o enigma encontram-se os já mencionados Kepler e Olbers, o físico inglês William Thomson (1824-1907) -- lorde Kelvin --, e, surpreendentemente, um poeta e prosador, o americano Edgar Allan Poe (1809-1849).


Poe, também um cientista amador, publicou em 1848, um ano antes de sua morte, um ensaio intitulado "Eureka: A Prose Poem" ("Eureka: um Poema em Prosa"), onde, entre outras coisas, ele apresenta a idéia -- correta -- de que o céu noturno não é brilhante porque a distância das estrelas de fundo é tão grande que a sua luz ainda não teve tempo de nos atingir, devido à velocidade finita da luz. Implicitamente, ele considera que as estrelas possuem idade finita pois, caso contrário, apesar da finitude da velocidade da luz, teria havido tempo suficiente para que a sua luz nos atingisse.


Lorde Kelvin foi mais além. Essencialmente, ele concorda com Poe. A sua importante contribuição é de natureza científica. Ao contrário de Poe, cujos argumentos são de caráter especulativo, ele mostrou, através de cálculos detalhados, que não só a velocidade finita da luz era um ingrediente importante na solução do enigma, mas que também a existência finita das estrelas era, de fato, fundamental. Antes da luz das estrelas mais distantes nos atingir, elas deixariam de brilhar. Outras estrelas nasceriam, mas Kelvin calculou que a quantidade de luz que nos atinge é, em qualquer instante, finita e muito pequena.


A propósito, Kelvin não acreditava em paradoxos: "-- Em ciência não existem paradoxos", afirmou certa vez, em 1887, num discurso acadêmico. Para ele, os paradoxos eram resultados de mal-entendidos, em outras palavras, do uso equivocado do conhecimento científico, dos fatos experimentais e das evidências observacionais exibidas pela Natureza.


Harrison fez o cálculo do limite de fundo, para todo o universo, utilizando dados astronômicos atualizados, e encontrou, ao invés dos 6.000 trilhões mencionados acima, uma distância de 100 bilhões de trilhões de anos-luz! Mesmo sendo esta distância tão grande, o universo pode ser maior, e poderíamos ter um céu "infernalmente" recoberto de luz. Por que, afinal de contas, isto não acontece? Como a idade média das estrelas é da ordem de 10 bilhões de anos -- que, incidentemente, é a duração de "vida" prevista para o Sol -- conclui-se que antes da sua luz nos atingir, ou seja, após percorrerem 10 bilhões de anos-luz, elas simplesmente deixam de emitir luz, por chegarem ao final de seu ciclo evolutivo. Outras estrelas são formadas mas a energia total disponível em cada instante não é suficiente para que o céu seja tão brilhante como o disco solar.


Aqui entra a contribuição de Kelvin, através de seus cálculos. Em 1901, ele mostrou que a razão entre o brilho do céu noturno e o brilho do disco solar é igual à razão entre o tempo de vida das estrelas e o tempo necessário para a luz percorrer a distância de recobrimento. Com os dados apresentados acima vemos, então, que o brilho médio do céu noturno é, na realidade, igual a 10 bilhões de anos dividido por 100 bilhões de trilhões de anos, ou, um décimo trilionésimo, do brilho do disco solar!


A conclusão final de Harrison, e que sintetiza de forma bastante simples os cálculos de Kelvin, é de que não há energia suficiente no universo para que o céu se apresente excessivamente brilhante, como afirma o paradoxo de Olbers. O universo pode não ser infinitamente grande, mas é grande o suficiente para não ser totalmente preenchido por uma radiação tão intensa quanto aquela que observamos diretamente no Sol.


Quer dizer, o universo é realmente muito grande mas a disponibilidade de energia não é suficientemente grande para que o céu noturno brilhe com a intensidade do disco solar.


Ainda bem, para nós, humanos, e para toda a vida existente no planeta!


*Domingos Sávio de Lima Soares é físico, astrônomo e professor do departamento de física da UFMG. 

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