segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Einstein e a defesa das liberdades civis

Por Olival Freire Jr.*
Publicado originalmente na revista Com Ciência

Este artigo apresenta não o Einstein cientista, mas o cidadão, e seus posicionamentos políticos. Ele apresenta um aspecto de sua biografia muitas vezes ausente nas comemorações em curso do centenário de seus seminais trabalhos científicos. Trata-se do Einstein defensor das liberdades civis, nos Estados Unidos, no contexto da Guerra Fria.

Essa postura o colocou em conflito com setores da sociedade americana e, sabemos hoje, converteu-o em um alvo privilegiado do todo poderoso FBI. A postura de Einstein apresenta, para o leitor contemporâneo, uma preocupante atualidade, uma vez que muitas das tendências criticadas por Einstein estão de novo presentes nos Estados Unidos.


A defesa das liberdades ameaçadas

A Guerra Fria que sucedeu a Segunda Guerra Mundial foi marcada nos Estados Unidos por uma verdadeira histeria anti-comunista, alimentada pela chegada dos comunistas ao poder na China e pela explosão da primeira bomba atômica soviética. Usualmente essa histeria tem o nome de macartismo por referência ao senador Joseph McCarthy, o qual se notabilizou pelo incentivo a essa histeria. Para melhor entendermos a expressão histeria anti-comunista é preciso realçar que o substantivo aqui é a histeria, um estado não racional que tomou conta de parcelas influentes da elite norte-americana. O alvo principal foi o setor da intelectualidade posto sob suspeição de inclinações comunistas. Esse setor incluía artistas, cientistas, professores e funcionários públicos. A partir da explosão da bomba atômica pelos soviéticos a histeria adquiriu um foco mais delimitado. Criou-se a idéia de que os soviéticos tinham construído a bomba porque espiões teriam passado o “segredo” da bomba para os soviéticos. Nesse contexto, os físicos e, em especial, os físicos teóricos passaram a ser considerados como o “elo mais fraco” da segurança americana, aqueles que detinham o “segredo” e eram propensos a passá-lo para os soviéticos.

A histeria, contudo, encontrou resistências. A resistência das vítimas se expressou muitas vezes na recusa a responder aos inquéritos das comissões do congresso, sob a alegação de que a constituição dos Estados Unidos assegura o direito do cidadão não responder a interrogatórios que possam levar a uma auto-incriminação. Evidência de que a histeria não era restrita ao senador McCarthy e seus seguidores, é o fato de que o pior acontecia depois da intimação para depor na referida comissão, com as pessoas sendo demitidas de seus empregos, e não só empregos no Estado, mas também em universidades e instituições variadas. Para muitas dessas vítimas a resistência prosseguiu na forma de processos jurídicos visando à recuperação de seus direitos. Como disse anteriormente, também ocorreu uma resistência importante entre aqueles que, mesmo não sendo suas vítimas imediatas, viram nesse processo uma ameaça às liberdades individuais. Albert Einstein foi o mais notável desses que resistiram.

A manifestação mais importante adotada por Einstein foi, seguramente, a carta que ele endereçou a William Fraeunglass, um professor de inglês da Escola Secundária James Madison, no Brooklyn, New York. Frauenglass foi intimado a depor em uma outra comissão do senado, a propósito de aulas que ele tinha ministrado anos antes. Ele tomou a decisão de não comparecer à comissão, argüindo ser um direito constitucional não responder questões relativas a filiações políticas. Frauenglass foi em seguida demitido de seu emprego pela prefeitura da cidade. Einstein foi procurado pelo professor demitido, e lhe endereçou uma carta na qual assinalava que não precisava ser mantida como reservada. De fato, a carta foi publicada na primeira página do The New York Times, em 12 de junho de 1953. Pela relevância, parece interessante transcrever fragmentos desse documento:

    Caro Senhor Frauenglass, [...] O problema enfrentado pelos intelectuais desse país é muito sério. Os políticos reacionários têm conseguido instilar no público suspeitas sobre as atividades intelectuais, associando-as com perigos sem fundamento. Tendo obtido êxito até aqui, eles buscam agora suprimir a liberdade de ensino e privar de suas posições todos aqueles que não se revelem submissos, isso é, levá-los à morte pela fome.
    O que deve a minoria de intelectuais fazer contra essa ameaça diabólica? Francamente, eu só vejo o caminho revolucionário da não-cooperação, no sentido de Gandhi. Todo intelectual intimado por um desses comitês deveria se recusar a testemunhar, isto é, ele deve estar preparado para a prisão e para a ruína econômica, em suma, para o sacrifício de seu bem-estar pessoal, no interesse do bem-estar cultural do país.
    Esta recusa deve estar baseada na afirmativa de que é vergonhoso para cidadãos inocentes se submeter a tal inquisição, e que este tipo de inquisição viola o espírito da Constituição.
    Se um número suficiente de pessoas estiver preparado para dar esse grave passo, eles obterão êxito. Caso contrário, os intelectuais desse país não merecem nada diferente da escravidão que lhes está sendo destinada.
    Sinceramente,
    Albert Einstein
    P. S. Esta carta não precisa ser considerada “confidencial”.

A carta repercutiu intensamente na opinião pública, recebendo apoios e críticas. Einstein não se curvou à pressão e, das suas várias manifestações posteriores, aquela com maior força de persuasão foi uma declaração ao jornal The Reporter, em 18 de novembro de 1954, na qual afirma que se pudesse decidir novamente sobre uma profissão para o seu sustento, ele não tentaria ser um cientista ou professor, ele escolheria ser um encanador ou um caixeiro-viajante, na esperança de encontrar aquele modesto grau de independência ainda possível naquelas circunstâncias.

A declaração de Einstein teve efeitos práticos entre as vítimas do macartismo, e também repercutiu no seu estado de espírito. Pouco depois da publicação da carta, os Fraeunglass visitaram Einstein. Por iniciativa de Tillie Frauenglass, que também era professora, a família registrou o encontro em notas, as quais foram mantidas inéditas por quase meio século. As anotações registram que, no final do encontro, Einstein se dirigiu a William Frauenglass com as seguintes palavras: “obrigado por ter me propiciado a oportunidade de me expressar”, e afirmou que ter escrito a carta “deu-me uma das mais profundas satisfações de minha vida”.


Einstein, David Bohm e o Brasil

A resistência de Einstein às ameaças às liberdades civis adquiriu, algumas vezes, o caráter de solidariedade a algumas daquelas vítimas. Um desses casos, o do físico David Bohm, é relevante também para a história do Brasil. David Bohm era professor na Universidade de Princeton quando se converteu em alvo da histeria anti-comunista em função de suas ligações com o Partido Comunista. Em um procedimento típico da época, a Universidade de Princeton decidiu, em meados de 1951, não renovar seu contrato. Bohm, que era amigo de Einstein, buscou seu apoio na tentativa de encontrar um emprego fora dos Estados Unidos, sem sucesso. Nessa altura, o Brasil entrou na história de David Bohm, quando o físico Jayme Tiomno, que finalizava seu doutoramento em Princeton, convidou-o para vir para a Universidade de São Paulo. Einstein foi solidário com esse processo, e a pedido de Abrahão de Moraes, então chefe do departamento de Física da USP, escreveu cartas em defesa de Bohm endereçadas ao presidente da República, Getúlio Vargas, e ao governador do estado de São Paulo, Adhemar de Barros, em defesa de David Bohm. As cartas foram enviadas a Abrahão de Moraes para serem utilizadas, se necessário. Elas não foram necessárias, e só na década de 1990, devido ao trabalho do pesquisador francês Michel Paty nos Arquivos Einstein, essas cartas vieram a público.

O envolvimento de Einstein com o Brasil, por intermédio de David Bohm, teve outros desdobramentos, apenas indiretamente relacionados com o contexto norte-americano. Bohm nunca se sentiu à vontade no Brasil. O programa de pesquisa que ele então desenvolvia – uma reinterpretação causal da mecânica quântica – não motivava os físicos, e ele tendia a considerar interessantes apenas aquelas pessoas que partilhavam o seu ponto de vista sobre a mecânica quântica. Ele não tinha nenhum interesse prévio no Brasil, e nem conhecimento anterior sobre o país. Quando aqui chegou ele ficou surpreso porque o Brasil não era tão desenvolvido quanto os Estados Unidos. Além disso, como reflexo dos tempos do macartismo, o consulado americano confiscou seu passaporte e declarou que ele só o teria de volta para retornar aos Estados Unidos. Bohm não gostava do Brasil, mas gostava menos dos Estados Unidos, temendo um novo processo caso retornasse. Em 1954, Bohm começou a elaborar planos para ir para Israel, e mais uma vez buscou apoio em Einstein que inicialmente hesitou, argumentando que só deveriam ir para Israel aqueles que tivessem planos de se estabelecer por lá. Para o que nos interessa nesse artigo cabe assinalar que, na tentativa de convencer Einstein, David Bohm lhe escreveu enfatizando todas as adversidades que encontrou no Brasil. Deve ser dito que Bohm apontou problemas reais da sociedade brasileira da época, como a corrupção generalizada, mas a ênfase foi excessiva. Ele afirma que o governo brasileiro não apoiava a pesquisa, e é fato que o apoio existente era insuficiente, mas Bohm não observava que ele mesmo havia recebido todos os apoios que havia solicitado ao recém criado CNPq para trazer ao Brasil físicos com os quais queria interagir, como Jean-Pierre Vigier, Ralph Schiller e Mário Bunge. Einstein respondeu a Bohm com uma carta que incluía uma sentença curta sobre o papel da ciência e da educação em um país como o Brasil: “O que mais me espanta é o governo brasileiro não fazer nenhuma tentativa séria para tornar os altos estudos mais atraentes – é uma necessidade absoluta para o desenvolvimento técnico. Compare, por exemplo, como o Japão agiu no século XIX." A relevância das observações de Einstein para o Brasil de hoje explica o fato de que, desde quando essas cartas foram publicadas na revista Ciência Hoje, em 1993, de tempos em tempos a frase é retomada por cientistas ou jornalistas em declarações favoráveis a um maior apoio governamental ao desenvolvimento da ciência no Brasil.

O dossiê Einstein no FBI

O livro The Einstein File (New York, 2002), de Fred Jerome, nos propicia uma outra apreciação dos conflitos entre setores da sociedade norte-americana, o Estado americano, e o físico Albert Einstein. Não tenho espaço nos marcos deste artigo para uma descrição circunstanciada desse dossiê, nem para descrever a saga do escritor para obter a sua liberação. O que farei aqui é um sumário do que passamos a conhecer com esse livro.

A mais significativa revelação contida no dossiê que o FBI acumulou sobre Einstein é que no início da década de 1950, o todo poderoso chefe J. Edgar Hoover, desencadeou uma investigação visando reunir elementos para apresentar Einstein como comunista, ou como espião a serviço dos soviéticos, e com base nessa documentação iniciar um processo de cassação da cidadania norte-americana, para ulteriormente deportá-lo do país. A informação contrasta fortemente com a imagem de Einstein, construída na própria América, que o apresenta como o mais ilustre dos que emigraram da Alemanha nazista e buscaram a cidadania norte-americana. Por que tal investigação não transpirou à época? Primeiro, porque o próprio Hoover, consciente do prestígio internacional de Einstein, conduziu a investigação no mais absoluto sigilo. Segundo, porque o FBI e outras agências norte-americanas nada encontraram de substancial para fundamentar a denúncia. Terceiro, porque com o insucesso da investigação, e o crescimento, dentro e fora dos Estados Unidos, da insatisfação com a histeria macartista, e com as notícias do agravamento da saúde de Einstein, Hoover decidiu, no início de 1955, arquivar a investigação. Hoover não pôde anular o prestígio de Einstein, e não quis transformá-lo em um santo laico.

Fred Jerome teve uma segunda surpresa quando ele leu o “dossiê” Einstein. A quantidade e a diversidade das atividades políticas ultrapassava em muito a imagem pública construída pela mídia de um cientista alienado das preocupações terrenas. Além de atividades em defesa das liberdades civis, da paz mundial, e dos direitos dos judeus, outra faceta aparece com nitidez no dossiê. Trata-se da luta de Einstein contra a discriminação racial contra os negros norte-americanos; uma luta que muitas vezes esteve mesclada com a luta pelas liberdades políticas. Essa atividade começou antes mesmo de Einstein emigrar para a América. Já em 1931, ele e o escritor Thomas Mann participavam de um comitê alemão em defesa dos negros de Scottsboro, os quais haviam sido condenados à cadeira elétrica no estado de Alabama, em um processo viciado pelo ódio racial. Foi a denúncia do racismo e a defesa das liberdades civis que levaram Einstein a desenvolver uma relação próxima com duas personalidades negras norte-americanas, conhecidas pelos seus talentos, pela cor, e pelas inclinações políticas para a esquerda. Como observa Fred Jerome, é uma lástima que tantas biografias de Einstein tenham subestimado suas relações com o historiador W. E. B. Du Bois, e com o atleta, ator, cantor e ativista político Paul Robeson. Com Robeson, Einstein manteve uma duradoura amizade. Nenhuma dúvida pode restar quanto ao fato de que o ativismo de Einstein contra a discriminação racial dos negros norte-americanos profundamente irritava J. Edgar Hoover, conhecido pela sua conduta racista. Tratava-se, claro, de uma época, antes da luta pelos direitos civis, na década de 1960, na qual um funcionário público com tal responsabilidade não precisava disfarçar sua postura racista.

Conclusão:

O gesto de Einstein ao condenar a histeria anticomunista como uma ameaça às liberdades cívicas foi um gesto visionário. Uma visão de conjunto dos efeitos do macartismo, na vida política e cultural dos Estados Unidos, ainda não foi obtida; e é significativo que apenas nos últimos dez anos tenha aparecido um número expressivo de trabalhos lidando com os efeitos de tal contexto entre os cientistas. A corajosa posição de Einstein, contudo, guarda uma preocupante atualidade. O modo como os Estados Unidos reagiram ao ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 tem levado muitos analistas a afirmar que uma semelhante ameaça às liberdades está posta na ordem do dia. Duas informações podem ilustrar essa ameaça. Em abril de 2004, a associação Union of Concerned Scientists, que conta com a adesão de vinte detentores do Prêmio Nobel, divulgou relatório cuja tese básica é que a administração Bush tem tentado interferir diretamente na condução da pesquisa em tópicos sensíveis às políticas adotadas pelo governo Bush, a exemplo de contracepção e combate à AIDS. No dia 10 de novembro do mesmo ano, um dos editoriais do jornal The New York Times, assinado por Nicholas D. Kristof, alertava para o número de jornalistas – oito – que estavam sendo processados, e na iminência de irem para a prisão, porque teriam se recusado a revelar fontes de matérias incômodas a setores da administração pública. O editorial afirma que é verdade que a responsabilidade primária por tais atos é dos juízes que estão conduzindo os processos contra os jornalistas, mas, alerta o jornal, em alguns casos é o próprio governo que tem solicitado tais provas. O editorial conclui, afirmando que “provavelmente não é uma coincidência que esteja ocorrendo esta ofensiva contra a liberdade de imprensa no período de uma administração que tem uma afeição brejneviana pelo sigilo”.

Os leitores interessados na documentação usada neste texto devem consultar o meu artigo “Einstein e política: pensamento e ação”, publicado na revista Ciência & Ambiente, n. 30.

*Olival Freire Jr. é professor do Instituto de Física, da Universidade Federal da Bahia e do Dibner Institute for the History of Science and Technology, MIT.

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