sexta-feira, 1 de julho de 2011

Saramago, a fábula do mestre

Por Débora M. Alcântara*
De Salvador

A palavra não morre quando se impregna na memória, feito um anzol na guelra de um peixe. É dessa potência que se constituem as obras do Nobel de Literatura, José Saramago: a tentativa incansável de fisgar o leitor, como se fisga um peixe rebelde. Mas o leitor, como o peixe, ao abocanhar a isca, mesmo não sendo resgatado do silêncio profundo da água onde habita, é remetido ao choque de singularidades, de modos de ver e sentir. É transformado para sempre, levando o gosto do anzol desferido.

Essa é uma das possíveis analogias, entre anzol e poder da linguagem, entre peixe e leitor, retirada do primeiro livro de publicação póstuma do escritor, O Silêncio da Água, feito especialmente para crianças, há 20 anos. Em junho fez um ano que Saramago morreu. E como homenagem ao autor, neste mesmo mês, a Fundação José Saramago, sediada em Lisboa, resolveu presentear os leitores mirins com essa fábula, uma memória a infância de Saramago, ilustrada pelo espanhol Manuel Estrada. No Brasil a edição da obra ficou por conta da Companhia das Letras, que já espalhou os exemplares pelas prateleiras.

Pescador

A história de O Silêncio da Água se passa nas margens do rio Tejo, quando um menino tenta obstinadamente pescar um grande peixe. Mas o danado escapa, mergulhando nas águas silenciosas. É quando uma lucidez toma o personagem. Transformado pelo encontro com o bicho, acalenta-se com uma certeza: “De uma maneira ou de outra, porém com o meu anzol enganchado nas guelras, tinha a minha marca, era meu", disse o garoto para si mesmo. “É essa marca transformado ra que pode sanar em parte a; frustração de não se conseguir; fisgar o leitor por inteiro”, afirma a escritora e poeta Myriam Fraga. Segundo ela, o autor mostra o sentimento de quem escreve, que é como “jogar uma   garrafa no mar”, sem saber quem vai achá-la e como vai concebê-la.

A singela obra infantil revela muito dos traços marcantes do autor, que tinha como prioridade absoluta o ser humano. Ele mesmo disse, em 1998, sobre os escritos que deram origem ao Silêncio da Água: "O que quero é recuperar, saber, reinventar a criança que fui, que é o pai da pessoa que sou”. Fisgado pelo anzol de Saramago, o consagra do poeta baiano Ruy Espinheira; Filho o define como um homem, cujos escritos estão muito além da aparência. “Ele foi um homem do seu tempo”.

Dono de uma lucidez implacável, o próprio escritor português José Saramago hegou a se julgar incapaz de escrever para crianças. Além de O Silêncio da Água, em que revisita o mundo da sua infância, o autor tem no conjunto de suas obras um segundo título, mais antigo, voltado para o público infantil: A Maior Flor do Mundo, escrito sob encomenda na década de 1970 e publicado em 2001.
Trata-se da descoberta de um menino sobre as possibilidades de mudar a história, fazendo nascer a maior flor do mundo. O autor desfere o texto como um
esboço de uma história que ele quis escrever um dia, sem assumi-la de fato, emprestando-a ao leitor, para que este tente recontá-la de uma “forma mais bonita”. “Quem me dera saber escrever essas histórias, mas nunca fui capaz de aprender, e tenho pena”, desculpa-se. “Apesar de A Maior Flor do Mundo e O Silêncio da Água serem livros infantis, não fazem concessões facilitistas (sic) que muitas vezes se encontram em obras para este segmento”, disse o diretor da
Fundação José Saramago, Sérgio Letria.

Delicadeza

Assim como Saramago, Myriam Fraga, cuja maioria das obras é voltada para o público adulto, experimentou o fino desafio de escrever para crianças. Uma de
suas delícias preparadas para os pequenos é a biografia de Jorge Amado, publicada pela editora Callis, na coleção Crianças Famosas. Sobre a experiência que teve com a obra que conta a vida do escritor baiano, Myriam Fraga atesta: “Acho muito difícil escrever para crianças. Elas têm uma percepção muito aguda.
Então é preciso certa delicadeza. Acho que o desafio de Saramago foi o de não tornar a escrita idiotizada, que subestimasse a capacidade da criança em compreender o mundo”, disse. 

Na opinião do poeta Ruy Espinheira Filho, que também escreveu fábula para crianças, como a obra A Guerra do Gato, Saramago sempre tentou tocar o mais íntimo do animal humano. “Ele se sentia na obrigação de tentar captar o homem
em todas as suas dimensões”, explica, ressaltando que os escritos do autor português para crianças também estavam dentro dessa condição.

Já o escritor João Ubaldo Ribeiro, autor de três títulos infantojuvenis, prefere não fazer distinções nos cuidados entre escrever para crianças e adultos, mas adverte sua admiração pela sensibilidade do autor. “Apesar de seu ar rabugento, era incapaz de tratar mal uma pessoa, a não ser por motivos que considerasse importantes”.

Eternidade

Tanto, Myriam Fraga, como Ruy Espinheira Filho e João Ubaldo, destacam o caráter humanista das obras de Saramago. Em diferentes palavras, eles afirmam
que o escritor sempre fisgará aquele que se debruçar sobre seus escritos. “Ainda que de alguma forma não esteja conosco, continua a estar porque ainda provoca atos de nobreza e de bondade neste castigado planeta que habitamos”, disse a esposa Pilar Del Rio. E lembra das palavras do memorável autor, filho de camponeses sem terra de Azinhaga, ditas em 2006: “Quando me for deste mundo, partirão duas pessoas. Sairei, de mão dada, com essa criança que fui”

*Débora Menezes Alcântara é Jornalista e editora do fóton Blog.

 fonte: A Tarde

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