domingo, 10 de abril de 2011

Henrietta Leavitt, a mulher que descobriu uma régua cósmica

Por Domingos Sávio de Lima Soares*


Em 1925, o astrônomo norte-americano Edwin Powell Hubble (1889-1953) publicou um artigo científico onde ele demonstrava, de forma inequívoca, que a nebulosa irregular NGC 6822, era de fato um sistema estelar exterior ao nosso sistema da Via Láctea. Estava inaugurada uma nova área da astronomia: a astronomia extragaláctica, e os horizontes humanos ampliados de forma espetacular!

Hubble conseguiu realizar este feito de uma maneira muito simples: ele mediu a distância até a "galáxia de Barnard", cujo nome de catálogo é NGC 6822 e está localizada na constelação de Sagitário. A distância obtida era mais de duas vezes maior que as dimensões, conhecidas na época, da Via Láctea. Sendo assim, NGC 6822 deveria estar fora de nossa própria galáxia. Começava, então, a nossa viagem em direção ao grande universo das galáxias!


Para medir esta distância ele utilizou uma régua muito especial, uma "régua cósmica", capaz de medir distâncias até então inimagináveis. E esta régua, que ampliou de forma imensa os nossos horizontes, foi descoberta por uma mulher, a astrônoma, também norte-americana, Henrietta Swan Leavitt (1868-1921).



Henrietta Leavitt, cujo nome está escrito na história da ciência moderna como responsável pela descoberta de um método astronômico poderoso de medir distâncias: o método das estrelas variáveis Cefeidas. (Crédito: Domínio público)

Antes do advento dos computadores eletrônicos, cálculos matemáticos eram realizados por equipes de profissionais denominados "calculadores". Esta prática era bastante comum em todas as áreas das ciências exatas, e especialmente em astronomia. Em geral, os calculadores em astronomia eram mulheres, menos pelo fato de serem mais cuidadosas nos exaustivos cálculos do que pelo menor custo envolvido. Os salários de homens eram -- e, em muitas situações nos dias atuais, ainda são -- maiores do que os salários pagos às mulheres. Muitas calculadoras tornaram-se astrônomas de destaque na história da astronomia. Henrietta Leavitt é uma ilustre representante deste caso.

Após o término de seus estudos de graduação em 1892, Henrietta foi contratada pelo astrônomo Edward Pickering (1846-1919), do Observatório de Harvard, nos Estados Unidos. A sua função era a de calculadora, e ela deveria trabalhar no catálogo fotográfico do Observatório, medindo os brilhos de estrelas. Ela verificou que haviam milhares de estrelas variáveis nas imagens das Nuvens de Magalhães, que hoje sabemos serem galáxias satélites da Via Láctea. Entre as estrelas variáveis, havia um tipo especial, denominadas "variáveis Cefeidas".

As características que definem uma variável cefeida são o grande brilho -- são estrelas supergigantes -- e o seu período de variabilidade -- o tempo transcorrido para ocorrer um ciclo completo de variação de brilho --, de 1 a 100 dias, aproximadamente. A variação do brilho das Cefeidas também é típica. Ela apresenta um aumento rápido do brilho até o máximo e em seguida uma diminuição lenta, até o brilho mínimo. A causa da variabilidade está na pulsação da estrela, isto é, na variabilidade de seu tamanho, e das conseqüências desta variabilidade sobre outras características da estrela como, por exemplo, densidade e temperatura. Após a estrela passar pelo seu tamanho -- raio -- mínimo, ela possui um brilho maior. À medida que seu raio aumenta o seu brilho diminui. A estrela pulsa e o seu brilho varia durante a pulsação. A principal causa da variação do brilho da estrela, no entanto, não é a simples variação de seu tamanho, mas está diretamente relacionada à variação da temperatura de sua superfície. Os detalhes do mecanismo físico que gera a variabilidade das Cefeidas foram propostos, pela primeira vez, pelo astrofísico britânico Arthur S. Eddington (1882-1944).

As variáveis Cefeidas têm este nome porque a primeira delas foi descoberta na constelação de Cefeu ("Cepheus", em latim). A estrela era a quarta mais brilhante da constelação, e por isto denominada, conforme a convenção em astronomia, de Delta Cephei (ou, Delta de Cepheus), onde "delta" é a quarta letra do alfabeto grego.



Gráfico de uma "curva de luz" de uma estrela variável cefeida fictícia, com período de pouco mais de 3 dias. O brilho da estrela, representado pelos pontos, varia periodicamente entre um valor máximo e um mínimo. Note que a variação até o máximo é relativamente mais rápida que a diminuição até o brilho mínimo. Esta é uma das características das variáveis Cefeidas. (Crédito: Domingos Soares)


Henrietta descobriu um fato importante nas variáveis Cefeidas das Nuvens de Magalhães: as variáveis de maior brilho possuiam um período grande e as de menor brilho um período pequeno. E a relação entre brilho e período era muito simples, o brilho era diretamente proporcional ao período. Como as estrelas estavam todas à mesma distância da Terra, pois se localizavam nas Nuvens de Magalhães, a relação entre o brilho aparente, que ela media, e o período era, na verdade, uma relação entre brilho intrínseco -- ou absoluto -- e período. Esta relação é também chamada de relação "período-luminosidade".



Gráfico feito por Henrietta Leavitt em um artigo de 1912, em que ela descreve a descoberta da relação período-luminosidade para as variáveis Cefeidas da Pequena Nuvem de Magalhães. O eixo vertical registra os brilhos aparentes e o eixo horizontal o período. As duas retas correspondem à relação para os máximos e para os mínimos de brilho aparente. A reta significa que existe uma "proporção direta" entre período e brilho. (Crédito: Henrietta Leavitt)

Como utilizar a relação período-luminosidade para medir distâncias? Ora, é sabido que o brilho de uma fonte parece ser tanto menor quanto maior é a distância a que ela se encontra do observador. Existe uma lei muito simples: o brilho aparente é inversamente proporcional ao quadrado da distância da fonte. Quer dizer, se conhecermos o brilho de uma fonte luminosa e a sua distância, e medirmos o seu brilho a uma distância desconhecida, podemos, com uma simples operação matemática, calcular a distância da fonte! Por exemplo, se uma fonte possui um brilho 4 vezes menor que o seu brilho na distância conhecida, então isto significa que ela está a uma distância 2 vezes maior. Bastava então conhecer a distância de uma variável cefeida de nossa própria galáxia, o que pode ser conseguido com métodos apropriados para distâncias menores. A relação período-luminosidade das Nuvens de Magalhães pode ser "calibrada" e torna-se então uma relação entre período e brilho a uma distância conhecida, ou "brilho absoluto".

Ao observarmos uma variável cefeida de distância desconhecida, basta medir o seu período, o que é simples, e a relação período-luminosidade, calibrada como descrito acima, fornecerá o brilho absoluto da estrela. Mede-se o brilho aparente da estrela e aplica-se a lei do inverso do quadrado da distância para se obter a sua distância verdadeira.

Este método é muito poderoso, porque as estrelas variáveis Cefeidas são estrelas supergigantes, as quais possuem luminosidades intrínsecas milhares de vezes maiores que a luminosidade do Sol. E assim podem ser observadas mesmo quando se localizam a distâncias muito grandes.

Foi assim que Edwin Hubble descobriu a distância até a galáxia de Barnard. Ele identificou variáveis Cefeidas na nebulosa, mediu os períodos, e daí deduziu os brilhos absolutos. Mediu então os brilhos aparentes de cada variável nas fotografias que obteve, e, finalmente, deduziu as distâncias até as variáveis, e portanto, até a galáxia. O resultado foi dramático: a nebulosa estava localizada a uma distância que era duas vezes e pouco maior que o tamanho de nossa própria Via Láctea. Era um sistema estelar localizado fora de nossa galáxia! Era uma outra galáxia! Foi uma das maiores descobertas da astronomia, e inaugurava-se uma nova era na pesquisa astronômica, a era da "astrofísica extragaláctica".

A nebulosa de Barnard tem este nome porque foi descoberta em 1884 pelo astrônomo norte-americano Edward E. Barnard (1857-1923). Ela foi catalogada, mais tarde, pelo astrônomo dinamarquês John L.E. Dreyer (1852-1926) em seu "The New General Catalog of Nebulae and Clusters of Stars", ou, "O Novo Catálogo Geral de Nebulosas e Aglomerados de Estrelas", com o número 6822, daí o seu nome NGC 6822. Depois das Nuvens de Magalhães, ela foi o primeiro sistema estelar onde foram identificadas variáveis Cefeidas. Hubble encontrou nela 15 estrelas variáveis, das quais 11 eram Cefeidas.

As observações foram realizadas com um telescópio refletor, cujo espelho possui 2,5 metros de diâmetro, localizado no Monte Wilson, no estado norte-americano da Califórnia. Utilizando a calibração da relação período-luminosidade conhecida na época, Hubble calculou a distância até NGC 6822 em 700 mil anos-luz. O tamanho do sistema da Via Láctea foi determinado pelo astrônomo norte-americano -- contemporâneo e um dos maiores rivais científicos de Hubble -- Harlow Shapley (1885-1972) em 300 mil anos-luz, utilizando-se a mesma calibração. A conclusão era definitiva: NGC 6822 não estava confinada aos limites da Via Láctea!

A calibração moderna da relação período-luminosidade das variáveis Cefeidas resulta em uma distância de 1,6 milhões de anos-luz para NGC 6882.

Logo em seguida, Hubble repetiu o mesmo procedimento para a Grande Nebulosa de Andrômeda (cujo nome de catálogo é M31) e para a Nebulosa do Triângulo (M33). O resultado foi o mesmo: elas eram sistemas independentes, situadas a distâncias de mais de dez vezes o tamanho de nossa própria galáxia!
O método das variáveis Cefeidas continua sendo uma ferramenta moderna de medida de distâncias cósmicas. Um dos projetos de pesquisa realizado pelo Telescópio Espacial Hubble (http://hubblesite.org) trata da identificação de variáveis Cefeidas em galáxias distantes, tendo como objetivo a determinação precisa de suas distâncias até nós. A galáxia mais distante na qual estrelas variáveis Cefeidas foram observadas é a galáxia espiral M100 (também catalogada como NGC 4321), pertencente ao aglomerado de galáxias de Virgem. Ela está localizada na constelação de Coma Berenices (Cabeleira), que está próxima da constelação de Virgem. O Telescópio Espacial Hubble observou esta galáxia e os astrônomos responsáveis pelo projeto descobriram nela 20 variáveis Cefeidas. Os astrônomos estudaram cerca de 40.000 estrelas para chegar a este resultado. As observações foram realizadas num intervalo de 2 meses, durante os quais foram feitas 12 imagens da galáxia, cada uma delas de uma hora de exposição. O intervalo de 2 meses, ou 60 dias, é apropriado para detecção de variáveis Cefeidas, pois como se viu acima, os períodos destas variáveis vão desde 1 até 100 dias.

A imagem mostrada aqui refere-se a uma das variáveis Cefeidas de M100, localizada na periferia do disco da galáxia. É notável a detecção da variação do brilho da estrela, especialmente por se tratar de uma galáxia tão remota. Isto mostra de forma bastante forte o sucesso do Telescópio Espacial Hubble. Este resultado seria impossível de se obter com telescópios em terra. A análise de todas as 20 Cefeidas identificadas na galáxia, com o auxílio da relação período-luminosidade, resultou numa distância de 56 milhões de anos-luz.



Uma estrela variável Cefeida, localizada na periferia do disco da galáxia M100, está identificada pelo pequeno quadrado, à direita da imagem. Parte do núcleo da galáxia aparece no canto inferior esquerdo. Os três quadros superiores mostram a estrela nos centros, ilustrando a variação de seu brilho. Como se vê, o brilho da estrela aumenta a partir do quadro da esquerda. (Crédito: Wendy L. Freedman/Telescópio Espacial Hubble)

Publicado no site do autor 
Semanalmente republicaremos no fóton a Série o Reino das Galáxias.



*Domingos Sávio de Lima Soares é físico, astrônomo e professor do departamento de física da UFMG.

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