segunda-feira, 21 de março de 2011

Breu – Parte I

Por Rafael Mendes*
Do Rio de Janeiro

Breu. Escuridão absoluta. E nada mais à frente, atrás, por cima, abaixo ou em qualquer direção. Flutuando em negror profundo, quase hibernal. Não sei se o escuro se deve aos meus olhos fechados por sequer saber se tenho os olhos fechados ou abertos. Fechados, eu suponho. Assim são os olhos da morte mais digna. Mas eu não quero ir! Sem nem mesmo subir as pálpebras, meu breu começa a gradativamente adquirir luz. Consequentemente, forma. Cor. Sentido. Reconheço o casarão do sítio de meu avô.


A morada ilustre de tantos carnavais, primos, macarronadas de domingo, brinquedos espalhados, brigadeiros na panela, filhotes de cachorro, pique-esconde, empurrões no lago – “Não faça mais isso, Lucas! Não sabe que seu primo não sabe nadar?”…

A imagem da minha velha casa do meu avô continua clareando, até restar aí o antibreu. O branco absoluto. Atordoante de tão reluzente. Um brilho dourado e difuso então se faz presente. Uma imagem, um vulto, um… Intraduzível, inexplicável. Inrelatável. Anjo Gabriel. O próprio, diante de mim! Não, não é possível discernir qualquer forma tangível a olhos humanos, mas sim, é ele. E isto, eu simplesmente sei. Ou talvez seja Buda, Brahma, Vishnu, Jeová, Alá, Belzebu, Exu, Osíris, Zeus, Deus, Eu, Tu, Ele, Nós, Todos Eles. Pra mim, é Gabriel.

– É cedo. Tens ainda o que aprender.

Ao fim destas palavras, um raio de luz divinal proveniente da mesma entidade veio me fulminar e novamente tomar tudo de forma ofuscante e novamente atordoante. Mais que isso agora: dolorosa.

***

O relógio de parede que se destaca ao lado de toda a aparelhagem médica em torno da mesa de operações marca 23:59. Uma linha reta verde contínua no fundo negro marca o fim da linha para o velho moribundo de olhos arregalados estendido por sobre a mesa.

– Esse ainda vai viver!

Ao fim destas palavras. O desfibrilador toca friamente o peito fraco e nu do velho e preenche-o com doses de 220 volts da mais pura força vital. Seus olhos, outrora arregalados, agora de fato abertos.

***

Já cansei de ver em filmes, seriados e novelas ou ler em livros o quanto a comida de hospital é ruim. Sempre achei que era algo ficcionalmente convencional, como o herói desastrado que invariavelmente se tornará habilidoso, o casal de comédia romântica que se desentende antes do final feliz, o negro coadjuvante que morre ou o vilão idiota que conta seu plano mirabolante ao mocinho em vez de executá-lo de uma vez. Mas isto é pior do que qualquer calamidade que possa vir a ocorrer neste mundo. Com que raios de batatas eles fazem este “pirê”? Isto cheira mal, aparenta mal, desce mal e tem gosto pior ainda! Jesus! Tirai-me o paladar e devolvei-me então a fome! Que diabo de castigo é este? Ao pecador, as batatas!

– Papai? Tá tudo bem?
– Hã? Ah, Estela, é você. Claro que está tudo bem. Já não falei que se eu precisar, eu chamo a enfermeira?
– É, falou… Mas eu ouvi o senhor resmungando e fiquei preocupada…
– Pois não precisa se preocupar. Está tudo bem. Pode ir atrás do seu moleque.
– O Carlinhos tá na escola agora, papai…
– Eu sei! Estou falando do imprestável do//
– Pára de falar assim do Sérgio, papai! Mas que coisa! Quatro anos de casamento e você ainda não parou de cismar com ele?
– Porque ele não presta, carambolas! Quantas vezes eu vou ter que repetir? Não presta!
– Olha aqui, papai! Eu já não agüento mais essa sua implicância! Sabe qual é a vontade que eu tenho às vezes? De te enfiar numa merda de um asilo de uma vez por todas!
– Ah, é? Pois faça isso! Nada é pior do que ouvir a minha própria filha defendendo um marginal e ainda ter que comer essa gororoba nojenta de hospital! Porque não me manda logo pro inferno??
– Não seja por isso! Vai pro inferno!

Blam! Miserável… Batendo a porta na minha cara! Anos criando, educando… E é essa a grande recompensa. Qual o propósito de ter filhos? À medida que os anos passam, eu entendo menos. Afinal de contas, à medida que os anos passam, eles trazem as rugas e cabelos brancos enquanto levam a saúde, o viço, a dignidade e a credibilidade. Quem escuta um velho? De que serve um velho? O que fazer com um velho? “Enfiar numa merda de um asilo de uma vez por todas”, talvez. Felizes são os velhos da África tradicional. Quisera eu ser considerado “a memória viva de um povo”, o “detentor do grande saber ancestral”, a “ponte entre os antepassados e as novas gerações”, “blábláblá”… A mim? Só restou ser velho. Ser velho e, como velho que se preze já está velho demais pra viver, ficar em casa velhando e velhando até ser velho o suficiente pra ser velado tão somente à luz das velas. Perdemos a batalha e o mundo para os mais moços. Ah, a mocidade… Bons tempos. Velhos tempos. Bom. Já que virei velharia, velharei. Ao perdedor, as batatas. (Não entendeu? Não se incomode, caro leitor. É apenas velharia.)

***

*Rafael Mendes é estudante de Letras – português/literaturas (e italiano) da UFRJ e edita o blog Ode ou Ódio.

2 comentários:

Luiz disse...

Arapiraca, não saia de seu lado literário. Gostei muito. Entenda o literário como elogio é claro.

Ara disse...

Olá Luiz, essa prosa é do Rafael Mendes do Rio de Janeiro, ele estuda letras e trabalha com comunicação também e mantém o belo blog Ode ou Ódio, o endereço está not exto. Abs
Ara

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