Por Débora Alcântara
Para o Jornal A Tarde em Salvador
Mesmo depois de sua morte, em janeiro do ano passado, a cientista política e historiadora greco-brasileira Katia de Queiroz Mattoso tem sua história tomada de acontecimentos que chegam fazer jus às metáforas das jornadas mitológicas de seu berço. Nascida na cidade de Vólos, a mesma onde teria nascido Jasão, assim como ele e os argonautas, Katia Mattoso atravessou mares e desbravou territórios. Jasão e os argonautas viveram aventuras em busca da lã de ouro do carneiro alado Crisómalo para assumir o trono de Vólos.
Já Katia Mattoso percorreu meio mundo estudando e ensinando e depois atravessou o Atlântico para ajudar o brasileiro, notadamente o baiano, a entender sua própria história. Se vestiu até a alma de baiana, chegando a ser professora emérita da Universidade de Paris-Sorbonne, onde, com sua tese Bahia, Século XIX: uma Província no Império, desbravou a cadeira de História do Brasil, ocupada por ela de 1988 até sua aposentadoria em 1999. “Ela, que veio de um mundo branco, europeu, descobriu que aqui havia um povo fantástico e decidiu esmiuçar sua história”, atesta a colunista de A TARDE, Teresinha Cardoso, amiga da historiadora.
Sem que a jornada de suas investidas tenha trégua, mais um acontecimento trava a marca de sua imponência na Bahia: um acervo seu com mais de mil exemplares, referência para o estudo da história moderna e da escravidão, já está no meio do Atlântico e deve chegar ao porto de Salvador no próximo dia 26, vindo diretamente da Europa. “Mas não é só isso. Em meio a essas obras vem também o ouro da Babilônia para os estudiosos da área”, comemora Hozana Maria de Azevedo, chefe da Biblioteca Universitária Isaias Alves, da Ufba, para onde irá o acervo. Ela se refere aos vários dossiês manuscritos, anotações, fichas de leituras e transcrições de documentos acumulados ao longo das décadas em queKatia Mattoso se dedicou ao estudo da história da Bahia e do Brasil.
Antes de sua morte, em janeiro do ano passado, ela doou grande parte de seu acervo particular ao arquivo da Universidade Federal da Bahia (Ufba), que guarnece mais de 1,3 mil exemplares vindos ao Brasil em 2010.
Já os quatro metros cúbicos de obras, que chegarão de navio, são uma doação da família de Katia Mattoso e de Jacqueline Donel, grande amiga da historiadora, em cuja casa, em Paris, se encontrava o acervo. “Esses são os livros dela que têm dedicatória dos autores. Decidimos que a biblioteca de minha mãe deve estar reunida e na Bahia”, disse a filha Teresa Cristina Mattoso Mendonça, 53, revelando que a Universidade Paris IV chegou a manifestar forte interesse em possuir os mais de mil volumes restantes da mulher que ajudou a mudar a visão acadêmica do Brasil na Europa.
“Espero, sinceramente, que não haja nenhum contratempo ou demora na retirada desse material do porto. As taxas de armazenamento são caras e terão que ser pagas pela Ufba, caso ocorra algum atraso no desembaraço alfandegário”, preocupa-se o historiador e último orientando de Katia Mattoso, Evergton Sales, um dos intermediários do envio da biblioteca.
Legado
A tamanha dedicação à academia, segundo a filha Teresa Cristina, fez parte de um princípio ensinado com muito rigor: “Não fazer nada pela metade. Bastante crítica e perfeccionista, ela nos dizia sempre que devemos ser responsáveis pelas escolhas que assumimos”, revela.
E por essa razão, é comum lembrar a contribuição da historiadora para a construção de um conhecimento mais sólido sobre a escravidão, com a obra Ser Escravo no Brasil (1982), traduzido em seis línguas. “A grande contribuição deste trabalho é sugerir uma visão das relações escravistas em toda sua complexidade, a complexidade que só quem estudou cuidadosamente as fontes primárias pode pretender alcançar e com isso evitar as fórmulas fáceis e muitas vezes grosseiras”, disse o historiador e ex-orientando João José Reis, que escreveu obras conceituadas com base nos estudos de Mattoso.
Prêmio
Dona de uma literatura obrigatória nos estudos de História do Brasil, Katia Mattoso também foi homenageada com um prêmio homônimo, da Fundação Pedro Calmon. O mentor foi o historiador e presidente da Fundação, Ubiratan Castro, que foi o primeiro orientando da professora na Sorbonne. “Podemos dizer que ela foi para a história da Bahia o que Jorge Amado foi para a Literatura”, acentua. Ele afirma ainda que a historiadora representou a modernização, abertura e internacionalização da História da Bahia no mundo. Este ano, Castro garante que a homenagem será especial. No dia 8 de abril, quando Mattoso faria 81 anos, será lançada a segunda edição do Prêmio Katia Mattoso de História da Bahia.
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