Por Débora M. Alcântara*
De Salvador
A palavra não morre quando se impregna na memória, feito um anzol na guelra de um peixe. É dessa potência que se constituem as obras do Nobel de Literatura, José Saramago: a tentativa incansável de fisgar o leitor, como se fisga um peixe rebelde. Mas o leitor, como o peixe, ao abocanhar a isca, mesmo não sendo resgatado do silêncio profundo da água onde habita, é remetido ao choque de singularidades, de modos de ver e sentir. É transformado para sempre, levando o gosto do anzol desferido.
Essa é uma das possíveis analogias, entre anzol e poder da linguagem, entre peixe e leitor, retirada do primeiro livro de publicação póstuma do escritor, O Silêncio da Água, feito especialmente para crianças, há 20 anos. Em junho fez um ano que Saramago morreu. E como homenagem ao autor, neste mesmo mês, a Fundação José Saramago, sediada em Lisboa, resolveu presentear os leitores mirins com essa fábula, uma memória a infância de Saramago, ilustrada pelo espanhol Manuel Estrada. No Brasil a edição da obra ficou por conta da Companhia das Letras, que já espalhou os exemplares pelas prateleiras.
Pescador
A história de O Silêncio da Água se passa nas margens do rio Tejo, quando um menino tenta obstinadamente pescar um grande peixe. Mas o danado escapa, mergulhando nas águas silenciosas. É quando uma lucidez toma o personagem. Transformado pelo encontro com o bicho, acalenta-se com uma certeza: “De uma maneira ou de outra, porém com o meu anzol enganchado nas guelras, tinha a minha marca, era meu", disse o garoto para si mesmo. “É essa marca transformado ra que pode sanar em parte a; frustração de não se conseguir; fisgar o leitor por inteiro”, afirma a escritora e poeta Myriam Fraga. Segundo ela, o autor mostra o sentimento de quem escreve, que é como “jogar uma garrafa no mar”, sem saber quem vai achá-la e como vai concebê-la.
A singela obra infantil revela muito dos traços marcantes do autor, que tinha como prioridade absoluta o ser humano. Ele mesmo disse, em 1998, sobre os escritos que deram origem ao Silêncio da Água: "O que quero é recuperar, saber, reinventar a criança que fui, que é o pai da pessoa que sou”. Fisgado pelo anzol de Saramago, o consagra do poeta baiano Ruy Espinheira; Filho o define como um homem, cujos escritos estão muito além da aparência. “Ele foi um homem do seu tempo”.
Dono de uma lucidez implacável, o próprio escritor português José Saramago hegou a se julgar incapaz de escrever para crianças. Além de O Silêncio da Água, em que revisita o mundo da sua infância, o autor tem no conjunto de suas obras um segundo título, mais antigo, voltado para o público infantil: A Maior Flor do Mundo, escrito sob encomenda na década de 1970 e publicado em 2001.
Trata-se da descoberta de um menino sobre as possibilidades de mudar a história, fazendo nascer a maior flor do mundo. O autor desfere o texto como um
esboço de uma história que ele quis escrever um dia, sem assumi-la de fato, emprestando-a ao leitor, para que este tente recontá-la de uma “forma mais bonita”. “Quem me dera saber escrever essas histórias, mas nunca fui capaz de aprender, e tenho pena”, desculpa-se. “Apesar de A Maior Flor do Mundo e O Silêncio da Água serem livros infantis, não fazem concessões facilitistas (sic) que muitas vezes se encontram em obras para este segmento”, disse o diretor da
Fundação José Saramago, Sérgio Letria.
esboço de uma história que ele quis escrever um dia, sem assumi-la de fato, emprestando-a ao leitor, para que este tente recontá-la de uma “forma mais bonita”. “Quem me dera saber escrever essas histórias, mas nunca fui capaz de aprender, e tenho pena”, desculpa-se. “Apesar de A Maior Flor do Mundo e O Silêncio da Água serem livros infantis, não fazem concessões facilitistas (sic) que muitas vezes se encontram em obras para este segmento”, disse o diretor da
Fundação José Saramago, Sérgio Letria.
Delicadeza
Assim como Saramago, Myriam Fraga, cuja maioria das obras é voltada para o público adulto, experimentou o fino desafio de escrever para crianças. Uma de
suas delícias preparadas para os pequenos é a biografia de Jorge Amado, publicada pela editora Callis, na coleção Crianças Famosas. Sobre a experiência que teve com a obra que conta a vida do escritor baiano, Myriam Fraga atesta: “Acho muito difícil escrever para crianças. Elas têm uma percepção muito aguda.
Então é preciso certa delicadeza. Acho que o desafio de Saramago foi o de não tornar a escrita idiotizada, que subestimasse a capacidade da criança em compreender o mundo”, disse.
Na opinião do poeta Ruy Espinheira Filho, que também escreveu fábula para crianças, como a obra A Guerra do Gato, Saramago sempre tentou tocar o mais íntimo do animal humano. “Ele se sentia na obrigação de tentar captar o homem
em todas as suas dimensões”, explica, ressaltando que os escritos do autor português para crianças também estavam dentro dessa condição.
em todas as suas dimensões”, explica, ressaltando que os escritos do autor português para crianças também estavam dentro dessa condição.
Já o escritor João Ubaldo Ribeiro, autor de três títulos infantojuvenis, prefere não fazer distinções nos cuidados entre escrever para crianças e adultos, mas adverte sua admiração pela sensibilidade do autor. “Apesar de seu ar rabugento, era incapaz de tratar mal uma pessoa, a não ser por motivos que considerasse importantes”.
Eternidade
Tanto, Myriam Fraga, como Ruy Espinheira Filho e João Ubaldo, destacam o caráter humanista das obras de Saramago. Em diferentes palavras, eles afirmam
que o escritor sempre fisgará aquele que se debruçar sobre seus escritos. “Ainda que de alguma forma não esteja conosco, continua a estar porque ainda provoca atos de nobreza e de bondade neste castigado planeta que habitamos”, disse a esposa Pilar Del Rio. E lembra das palavras do memorável autor, filho de camponeses sem terra de Azinhaga, ditas em 2006: “Quando me for deste mundo, partirão duas pessoas. Sairei, de mão dada, com essa criança que fui”
*Débora Menezes Alcântara é Jornalista e editora do fóton Blog.
fonte: A Tarde
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