sexta-feira, 15 de julho de 2011

Hackers e o desenvolvimento científico brasileiro

Por Nelson Pretto*
De Salvador

Cerca de cinco mil jovens de todas as idades estiveram reunidos em Porto Alegre, no final do mês passado, durante o 12º Fórum Internacional do Software Livre (FISL), tradicional evento da comunidade hacker organizado pela Associação do Software Livre (ASL) e pelo Projeto Software Livre Brasil, com apoio de um monte de gente e instituições.


Evento sempre muito badalado, que já teve a ilustre presença do ex-Presidente Lula bradando em alto e bom som contra a proposta de Lei do senador Eduardo Azeredo (PSDB), que ficou conhecida entre nós como AI-5 Digital pela sua tentativa de fazer calar a voz dos internautas que vivem plenamente a rede, criminalizando tudo que circula pela internet. O FISL já recebeu também o hacker ministro Gilberto Gil, que participou de um histórico encontro com Lawrence Lessig, do Creative Commons, e Richard Stalman, da Free Software Foudantion, a fundação que "segura" institucionalmente as licenças que garantem o sistema livre GNU/Linux.

Este ano, a maior autoridade governamental presente no Fórum foi o ministro da Ciência e Tecnologia, Aloísio Mercadante. Além de uma conferência pública, Mercadante, articulado pelo ativista e professor da Federal do ABC Sérgio Amadeu, teve um encontro com os hackers presentes no evento. Do encontro saiu a proposta de que o MCT passasse a assumir posição de vanguarda no apoio à criação científica e às liberdades no ciberespaço, fortalecendo a criação de tecnologias de ponta desenvolvidas na periferia do sistema.

Por outro lado, o governo brasileiro tem sido referência no mundo, em razão da sua postura em relação à governança da internet, com especial destaque para a questão da neutralidade da rede e da cultura digital, especialmente no que diz respeito às mudanças propostas para a legislação sobre direito autoral e da cultura (livre) digital, política essa que tinha enorme repercussão nacional e internacional quando no comando do MinC estavam Gilberto Gil e Juca Ferreira. O triste retrocesso do atual MinC - e que tem gerado muito protesto, os quais, lamentavelmente, a Presidenta Dilma parecer não querer ouvir! - quem sabe possa ser compensado por uma ação mais contundente do Ministério da C&T.

O MCT pode exercer importante papel na implantação de uma consistente política de apoio ao desenvolvimento cientifico e tecnológico, através do incentivo à criação livre realizada nos coletivos de desenvolvimento aberto e colaborativo de tecnologias livres, bem como a partir da implantação de políticas que incentivem as práticas recombinantes, a remixagem de conteúdos e criações, e a livre e solta produção de ciência e tecnologias. Isso porque não basta pensar em grandes grupos de pesquisas, nas universidades, nos institutos de pesquisas e continuar com a cabeça arrumadinha da ciência produtivista contemporânea, só cogitando soluções mirabolantes a partir de grandes projetos. Esses são importantes, evidentemente, mas muito mais precisa ser feito.

Da reunião com Mercadante, uma importante proposta foi lançada e precisa ser implantada: a formação de um sistema de fomento e incentivo ao desenvolvimento de tecnologias colaborativas, com ênfase nos pequenos grupos e até mesmo inventores e desenvolvedores isolados. O grupo presente na reunião, cerca de umas 40 pessoas, está produzindo um pequeno documento referência que será objeto de encontro ainda este mês (esperamos!) com uma equipe especialmente designada pelo Ministro para desenvolver a proposta. O que se quer é fortalecer e incentivar o saber coletivo que é produzido e que circula fora das Universidades, Institutos de Pesquisa ou do mundo empresarial.

Não se trata de uma oposição à esses espaços instituídos de criação e pesquisa, mas de compreender que eles não são os únicos. Mais do que isso, compreender que, para que eles próprios sejam fortalecidos, necessário se faz que os outros espaços sejam reconhecidos e o diálogo estabelecido. Isso tudo, da mesma forma como se deu com o MinC do governo Lula, que atuou de forma propositiva, estimulando a criação dos Pontos de Cultura, que, articulados, são hoje uma rica manifestação da produção de cultura em nosso país. Nessa mesma linha, ocupando esse nicho, o MCT poderia criar um novo e ousado sistema de inovação, pautado no fomento de uma cultura de computação mais confiável para a sociedade civil e também livre das amarras burocráticas dos pseudos controles que infernizam a vida de quem busca apoio financeiro para criar, seja ciência ou cultura.

Ao longo dos últimos anos, pelo menos quatro propostas de fortalecimento desta perspectiva inovadora e fortalecedora da formação científica da juventude já foram postas na mesa e divulgadas em diferentes espaços. Ennio Candotti, quando na Presidência da SBPC, falava nas OCA (Oficina de Ciências e Artes); eu tenho me referido à ideia de criação dos Pontos de Ciência e Tecnologia, na linha (e quem sabe articulado!) dos Pontos de Cultura do MinC; Sérgio Amadeu propõe a criação de garagens de criação científica; e o badalado neurocientista Miguel Nicolelis, figurinha fácil hoje em dia em todos os eventos aqui e acolá, escreveu um Manifesto da Ciência Tropical, todos mais ou menos na mesma linha.

Em última instância, todos propõem a implantação de um jeito hacker do Estado ao se relacionar com os criadores e inventores e, ao mesmo, tempo, uma forma de futucar mais diretamente as políticas públicas muito certinhas emanadas do campo educacional. Políticas que, no fundo, buscam apenas por o sistema em funcionamento de forma correta, sem nenhuma ação mais contundente numa perspectiva de revolucionar a formação de crianças e jovens. Estas políticas públicas educacionais estão apenas tentando arrumar a educação do século XIX para ser transmudada ao século XXI. Seria esse o caminho? Penso que não.

Crianças e jovens que já nascem hacker e começam desde cedo a se relacionar com a ciência, a tecnologia, a cultura e todos os processos criativos de forma animada e intensa, num rico processo de criação permanente, lamentavelmente, ao longo de sua formação, com o tempo e a escola, vão perdendo esse jeito hacker de ser. Passam a se relacionar com esses processos de maneira absolutamente burocráticas e desvitalizada, como, aliás, vem sendo feito com quase tudo na sociedade contemporânea. Aqui e no mundo...

A partir do encontro com o ministro Mercadante, no FISL 12, ficou a expectativa de que ele, mesmo sem ter ainda a "cabeça feita" do Ministro Gil, possa ser a nossa esperança de que o governo Dilma considere os hackers e a juventude fortes aliados para o desenvolvimento de um país autônomo, independente e criativo.

*Nelson Pretto é professor e já foi diretor (2000-2004 e 2004-2008) da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. Membro titular do Conselho de Cultura do Estado da Bahia. Físico, mestre em Educação e Doutor em Comunicação.

fonte: Terra Magazine

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