Por Débora M. Alcântara
De Salvador
As artes são condicionadas por seu tempo e expressam as ideias, necessidades, os sonhos e as aspirações de uma situação histórica particular. Mas ao mesmo tempo, como bem frisou o poeta e filósofo Ernst Fischer, “a arte supera essa limitação e, de dentro do momento histórico, cria também um momento de humanidade que promete constância no desenvolvimento”.
E é com essa potência de humanidade que Salvador está repleta de objetos e alegorias que narram, em diferentes e ressignificadas versões, a saga que marcou a história de formação do povo baiano: os levantes pela Independência do Brasil.
Quem for ao Palácio Rio Branco, na Praça Tomé de Souza, vai se deparar com uma enorme tela, de 1930, feita, sob encomenda do então governador Vital Soares, pelo artista fluminense Antônio Parreiras (1860-1937). A obra é uma mostra do resgate, sob uma mentalidade patriótica, de uma versão da Independência do Brasil, que extrapola o Grito do Ipiranga: ela evidencia as lutas sangrentas na Bahia para concretizar a separação de Portugal. A obra foi elaborada a partir das narrativas do povo de Cachoeira, em 1928, recolhidas pelo próprio Parreiras. Talvez por conta dessas narrativas populares, como destaca a historiadora Lina Aras, é que o artista destaque, no canto inferior direito da obra, o sofrimento do soldado Manoel Soledade, que tocava tambor no Regimento de Milícias. A pintura o mostra ferido e caído, ensanguentado, no chão da atual Praça da Aclamação, no dia 25 de junho de 1822.
Lembrando que a arte de representação oficial cumpria um papel para a História, o qual tem hoje a fotografia, Lina Aras adverte: “Não tinha como o artista deixar de evidenciar o que era fato, como a marcante presença de mestiços, negros e índios em grande parte do contingente populacional na época”. Ela ainda ressalta que a visão reparadora do papel dos negros e índios na luta pela independência é algo recente. “Provavelmente não foi essa visão que teve Parreiras. Amestiçagem não era algo aceito na época, mas era uma evidência”, afirma. “Não podemos esquecer que as elites dominantes locais na época ainda eram donas de escravos”, lembra o diretor da Fundação Pedro Calmon, Ubiratan Castro.
Identidade
Essa capacidade de reelaboração dos sentidos e valores de que fala Lina Aras pode nos remeter novamente ao pensamento de Ernst Fischer: “Coisas antigas, aparentemente há muito esquecidas, são preservadas dentro de nós, continuam a agir dentro de nós – frequentemente sem que as percebamos – e de repente vêm à superfície e começam a nos ‘falar’”. Mas quantos passam pela Praça Dois de Julho diariamente, no miolo do Campo Grande, deixam-se fisgar pela simbologia do monumento que referencia a “bravura” dos ancestrais autoassumidos como genuinamente brasileiros? Quantas crianças baianas aprendem onde estão as hermas (pilares) de Maria Quitéria e do general Labatut? Quantas foram ao largo da Lapinha e ao Panteão, em Pirajá, para aprender a história de seu povo pisando no mesmo chão onde se travaram batalhas decisivas? E o que dizer da obra do baiano Presciliano Silva, finalizada em 1930, que narra em óleo sobre tela a entrada do exército pacificador para anunciar a vitória sobre o domínio português e que padece, necessitando de restauração, no memorial da Câmara Municipal? Será que a pintura instiga nos parlamentares o sentimento coletivo de responsabilidade das decisões políticas para o bem comum? “Preservar é alfabetizar”, toma emprestado as palavras de Mário
de Andrade o historiador Francisco Senna.
*Débora Menezes Alcântara é Jornalista e editora do fóton Blog.
fonte: A Tarde
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