quinta-feira, 23 de junho de 2011

O "patinho feio", no reino das galáxias

Por Domingos Sávio de Lima Soares*
De Belo Horizonte

As galáxias que mais chamam a nossa atenção são as galáxias espirais -- especialmente pela beleza dos braços espirais --, e as galáxias elípticas, as quais apresentam uma distribuição de luz uniforme e suave contra o fundo do céu. Existe, no entanto, um tipo de galáxia, cuja beleza reside exatamente no fato de não apresentar harmonia ou regularidade em sua forma. Trata-se do "patinho feio" do reino das galáxias, e as representantes deste tipo são chamadas muito apropriadamente de "galáxias irregulares".

As galáxias irregulares tendem a ser menores do que as espirais e as elípticas, e são mesmo chamadas de galáxias "anãs". Na verdade, o termo "galáxia irregular" aplica-se tanto a galáxias espirais anãs, com estrutura perturbada, como a nossa companheira, a Grande Nuvem de Magalhães, quanto a todas as outras galáxias que não se enquadram em nenhum dos tipos que possuem uma estrutura regular.

A propósito, as Nuvens de Magalhães -- a Grande e a Pequena -- são galáxias satélites da nossa Via Láctea, sendo facilmente visíveis a olho nu nos céus do hemisfério Sul. Elas foram descobertas pelo navegador português Fernão de Magalhães (1480-1521) em 1520, quando realizava a sua viagem de circunavegação da Terra.

Quando Edwin Hubble (1889-1953) propôs o seu esquema de classificação de galáxias -- conhecida como a "forquilha de Hubble" --, ele simplesmente classificou como "irregulares" todas as galáxias que não se enquadravam dentro dos tipos espiral e elíptico. Hoje em dia, as próprias irregulares possuem uma distinção interna de classificação, como veremos. Pois bem, Hubble chamou de "Irr I" às galáxias irregulares nas quais podia se discernir pelo menos algum sinal de uma estrutura, como por exemplo, indicações de um braço espiral. E chamou de "Irr II" àquelas que se apresentavam de uma forma extremamente desorganizada. Para Hubble, portanto, ambas as Nuvens de Magalhães, a Grande e a Pequena, se enquadravam na categoria Irr I.

A Grande Nuvem de Magalhães apresenta uma barra estelar proeminente e indícios de um braço espiral. A Pequena Nuvem de Magalhães apresenta uma estrutura alongada sem qualquer sinal de braços espirais. Ambas são galáxias anãs, ou seja, as suas massas são milhares de vezes menores que a massa de uma galáxia espiral típica como a nossa.





 
A Grande Nuvem de Magalhães, à esquerda, e a Pequena Nuvem de Magalhães. Elas são galáxias anãs e satélites da Via Láctea. A Grande Nuvem de Magalhães é o protótipo de uma subclasse de galáxias irregulares. Note a barra estelar da Grande Nuvem, que é a estrutura principal que se vê na imagem. A Grande Nuvem e a Pequena Nuvem de Magalhães foram classificadas por Hubble como Irr I. A Pequena Nuvem é provavelmente um disco distorcido por forças gravitacionais de maré. (Crédito: GNM, Eckhard Slawik; PNM, David Malin)


A classificação das irregulares utilizada por Hubble revelou-se bastante geral, à medida que mais observações de galáxias irregulares foram sendo realizadas. Havia, claramente, a necessidade de um refinamento na definição dos tipos de galáxias irregulares.

O astrônomo francês, radicado nos Estados Unidos, Gérard de Vaucouleurs (1918-1995) foi o responsável por um grande aperfeiçoamento do sistema de classificação de galáxias de Hubble. Entre outras contribuições, ele introduziu uma modificação, no caso das irregulares, com o intuito de se ter uma classificação mais discriminatória. Ele propôs que as irregulares fossem classificadas como uma extensão da classificação das galáxias espirais. Hubble definiu para as espirais os tipos Sa, Sb e Sc. Nesta ordem, a-b-c, os bojos estelares diminuem e os braços espirais se abrem. Uma galáxia espiral Sa, por exemplo, apresenta um bojo grande e braços que espiralam bem próximos do bojo. Então, de Vaucouleurs criou o novo tipo Sd, em que os braços existem mas começam a apresentar irregularidades na sua definição. A seguir, criou o tipo Sm -- "m" de Magalhães --, já no domínio das irregulares, na verdade, substituindo as Irr I de Hubble, e cujo protótipo, ou modelo, seria a Grande Nuvem de Magalhães. Criou ainda os tipos Im, cujo representante mais ilustre é a Pequena Nuvem, e para finalizar, criou o tipo Ir, para incluir as verdadeiramente irregulares, frequentemente também chamadas de galáxias "amorfas", isto é, literalmente, galáxias "sem forma". Estas últimas englobariam as Irr II de Hubble.

Temos assim, para as galáxias espirais e irregulares, a nova sequência Sa-Sb-Sc-Sd-Sm-Im-Ir. Na prática, isto corresponde a uma extensão do ramo das espirais normais da forquilha de Hubble. Analogamente, teremos a extensão SBa-SBb-SBc-SBd-SBm-Im-Ir para o ramo das galáxias espirais barradas da classificação original de Hubble.

Podemos agora rever a figura acima, onde mostramos as Nuvens de Magalhães. De acordo com a revisão de de Vaucouleurs, elas serão agora classificadas como SBm -- a Grande Nuvem -- e Im -- a Pequena Nuvem.

As galáxias irregulares são muitas vezes observadas a grandes distâncias de nós também. É o que mostra a figura seguinte, a qual apresenta algumas das galáxias irregulares observadas pelo Telescópio Espacial Hubble, cujos tempos de exposição foram muito grandes.






Galáxias irregulares distantes observadas pelo Telescópio Espacial Hubble. A partir da galáxia no canto superior esquerdo, e no sentido horário, elas podem ser tentativamente classificadas como SBm, Ir, Ir e Sd, no sistema revisado de de Vaucouleurs. As regiões azuladas nas galáxias indicam regiões de intensa formação de estrelas, uma característica típica das galáxias irregulares. (Crédito: Richard Griffiths, NASA/HST)


As galáxias irregulares possuem certas características, as quais se apresentam em todos os subtipos, de Sd a Ir. Em primeiro lugar, elas possuem regiões de intensa formação estelar. Estas regiões aparecem nas imagens como zonas de cor predominantemente azul. A luz azul é emitida por estrelas jovens de massa muito maior do que a do Sol -- 5 a 10 vezes maior -- e que evoluem rapidamente, existindo por "apenas" dezenas de milhões de anos. Estrelas com a massa igual ou menor do que a do Sol existem por até dezenas de bilhões de anos. Outra característica, e intimamente ligada à formação de estrelas, é a presença de nuvens de gás e poeira. Estas nuvens são vistas nas imagens com pequenas manchas avermelhadas. A luz vermelha é proveniente do gás hidrogênio, energeticamente excitado. O hidrogênio não é o único componente destas nuvens mas é o elemento mais abundante. A excitação do hidrogênio é causada pela radiação intensa das estrelas vizinhas. Estas estrelas, além da luz azul, emitem fortemente em radiação ultravioleta, que é altamente energética, e ionizam e excitam energeticamente o gás presente nas nuvens.

Do ponto de vista estrutural, as galáxias irregulares muitas vezes apresentam um bojo estelar -- a estrutura esferoidal presente na região central das galáxias espirais. Mas este bojo, quando presente, está sempre deslocado da região central da galáxia. Este é um indício de perturbação morfológica, uma característica básica das galáxias irregulares. As galáxias irregulares são frequentemente o resultado de colisões de duas ou mais galáxias, ou de perturbações originadas de fortes interações gravitacionais de maré com uma galáxia próxima.

A nossa próxima irregular, M82, foi provavelmente perturbada pela sua companheira, a bela espiral M81. M82 é uma Ir. Ela é chamada de galáxia "Charuto", devido à sua aparência global em observações de tempo de exposição pequeno. Mas quando examinamos a sua estrutura interna percebemos que ela é realmente uma verdadeira Ir, com pouca ordem na distribuição estelar.





 
À esquerda vemos o par de galáxias M81 e M82. A galáxia irregular M82 é vista ao lado em detalhes. Note a estrutura interna perturbada. As manchas escuras são nuvens de poeira, as quais absorvem a luz visível. A coloração azulada é proveniente das estrelas da galáxia. A estrutura de filamentos, perpendicular ao plano da galáxia, é devida ao hidrogênio ionizado emitindo a sua característica luz vermelha. (Crédito: M81-M82, Takayuki Yoshida; M82, Telescópio Subaru, Japão)


Para finalizar, faremos uma homenagem à Grande Nuvem de Magalhães, a galáxia mais próxima de nós, e facilmente visível em nossos céus. A olho nu, ela é vista como uma mancha luminosa, esbranquiçada, contra o fundo do céu noturno, lembrando uma nuvem comum, de natureza meteorológica. Esta confusão é frequente entre os menos avisados. Mas é uma verdadeira galáxia! E, nós, habitantes do hemisfério Sul, temos o extraordinário privilégio de ter esta visão. A imagem que apresentaremos a seguir foi obtida com exposição de duração longa e mostra como a Grande Nuvem lembra uma galáxia espiral barrada. A estrutura fragmentada dos prováveis braços espirais não deixa dúvidas, no entanto, quanto à sua condição de verdadeira galáxia irregular. Mas este "patinho feio" é muito bonito, não é mesmo?






Imagem da Grande Nuvem de Magalhães obtida com uma exposição longa. A sua classificação como SBm é inquestionável. Note a barra central e os braços espirais fragmentados ao seu redor. (Crédito: Yuri Beletsky, ESO)



Publicado no site do autor 
Semanalmente republicaremos no fóton a Série o Reino das Galáxias.



*Domingos Sávio de Lima Soares é físico, astrônomo, professor do departamento de física da UFMG e colabora com fóton Blog.

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