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sábado, 28 de janeiro de 2012

Quantidade versus qualidade

Por Silvio R. A. Salinas*
Publicado no boletim da Sociedade Brasileira de Física em janeiro de 2010

Acabam de sair pela Editora da USP (EDUSP) os primeiros exemplares do volume I das obras científicas de Mario Schoenberg, projeto conduzido por Amélia Império Hamburger há alguns anos, com a colaboração de vários colegas. Apesar de figura maior da física teórica brasileira, Mario Schoenberg – essa era a grafia do seu nome científico –publicou apenas cerca de 80 artigos científicos durante uma carreira de uns 40 anos, com direito adicional a participação intensa na cultura (científica, política e artística) do País.

O primeiro paper de Mario Schoenberg foi publicado em italiano (Sull’interazione degli elettroni, Il Nuovo Cimento, XIII, 8, 349-354, 1936), dois anos depois da fundação da Universidade de São Paulo, com agradecimento profundo ao “orientador” Gleb Wataghin (“Ringrazio il prof. Wataghin d´avermi suggerito l´argomento e aiuitato nella ricerca della soluzione”). Tempos gloriosos em que os artigos científicos ainda possuíam aquela “aura” de significação que Walter Benjamin atribuía às obras de arte. Não há publicações conjuntas de Schoenberg e Wataghin, mas eles se agradecem mutuamente, às vezes, no decorrer do próprio texto dos seus artigos.

Naqueles tempos ainda não se falava no citation index e no “fator H”. Mas o meu colega Domingos Marchetti foi capaz de garimpar cerca de 40 resenhas dos trabalhos de Mario Schoenberg, publicadas nos Mathematical Reviews, em geral por autores de grosso calibre (aguardem o volume II, em que as resenhas vão ser transcritas).

Schoenberg publicava no exterior, mas também fazia questão de publicar no País, nos Anais da Academia Brasileira de Ciências. Eram publicações meio precárias, pouco cuidadas, mas ainda bem que existiam, como me observou Ernst Hamburger. Nos seus anos de maturidade, Schoenberg publicou nos Anais da ABC quatro longos artigos, com ideias em profusão, um tanto especulativos para o meu gosto, sobre quantum mechanics and geometry. Imaginem o meu espanto quando percebi que esses artigos foram lidos por Arthur Wightman, de Princeton, que assina as resenhas de Mathematical Reviews.

Nos tempos modernos, os Anais da ABC foram substituídos pelo Brazilian Journal of Physics (BJP), que eu editei durante dez anos. Como os tempos mudaram.… Estou colecionando casos e fatos para uma história da “internacionalização” da ciência brasileira (pelo menos da física no Brasil). Há uns dois anos, eu tinha um grupo de jovens doutores sob a minha “guarda”, na nova Universidade Federal do ABC. Eu conseguia que eles escrevessem pareceres, mas nunca consegui que nenhum deles publicasse sequer um único artigo no BJP, pois com absoluta razão alegavam que “não valia a pena”, que artigos no BJP seriam mal recebidos pelos avaliadores dos “qualis” de plantão.

Nessa época, deparei-me com outros problemas contemporâneos: pelo menos dois grupos de colegas, de instituições distintas, apesar da minha vigilância, conseguiram publicar duas vezes o mesmo artigo no próprio BJP! Encontrei outros artigos que podiam ser quase integralmente mapeados em artigos publicados no exterior, mais ou menos pelo mesmo grupo de autores, mas com qualidade de texto claramente inferior! Acabou-se a aura desses papers, que agora são feitos aos borbotões, para justificar a “produção” de uma linha de montagem que conta o número de itens produzidos, pouco se importando com a sua qualidade ou futura utilização. Há poucas semanas, surgiu na imprensa acusação de plágio envolvendo artigos assinados por autores da área biológica, da minha própria universidade. Os artigos de Mario Schoenberg eram em geral assinados pelo único autor, às vezes em companhia de colaboradores ilustres (Chandrasekhar, prêmio Nobel de 1983, George Gamow), às vezes com colaboradores mais jovens que se tornariam conhecidos (Lattes, Leite Lopes). Os artigos da “era da produção industrial” são assinados por muitos autores (em física de altas energias, por centenas de autores), que às vezes se responsabilizam por tarefas minúsculas, sem nenhuma visão de conjunto ou qualquer interferência na forma final. Se há problemas, a culpa recai sobre os “alunos”, autores mais jovens, como está acontecendo agora, nesse caso da área biológica, na minha universidade. Uma análise superficial do Currículo Lattes das pessoas envolvidas nesse caso indica perigo à vista: um dos autores conseguiu aumentar substancialmente a sua “produção de papers” a partir do momento em que assumiu responsabilidades administrativas mais pesadas (no ano da graça de 2008, em meio a tarefas pesadas, assinou a publicação de 11 artigos científicos); outro autor, com doutorado há menos de dez anos, aparentemente sem trânsito por outros centros cientificamente expressivos, conseguiu a proeza de assinar a publicação de 21 artigos na literatura internacional durante o ano da graça de 2009. Todos devem ser “bolsistas de pesquisa” do sistema (CNPq), vão manter a bolsa e conquistar promoções, e talvez as minhas suspeitas sejam profundamente injustas (…qui si convien lasciare ogni sospetto…).

No número de outubro de Physics Today aparece com destaque resenha de livro publicado recentemente sobre o caso do Dr. Jan Hendrik Schoen, jovem pesquisador dos Bell Labs, que no início da década maravilhou a comunidade de “física da matéria condensada” com descobertas de propriedades sensacionais de semicondutores orgânicos (Plastic Fantastic: How the Biggest Fraud in Physics Shook the Scientific World, de E. S. Reich, Palgrave Macmillan, 2009). A resenha é assinada por Myriam Sarachick, física da matéria condensada e presidente da American Physical Society em 2003. A leitura do texto é particularmente recomendada nos tempos atuais. Artigos de Schoen eram publicados aos borbotões, em revistas de prestígio, como Science, que chegou a dispensar o esquema habitual de análise por diversos revisores. Era a época de surgimento e ascensão da nanociência, quando os editores de Nature e Science perceberam que tinham dado peso demais à área biológica, e que deveriam agora dar força aos artigos sobre “novos materiais”. No auge da fama, no ano de 2001, antes das denúncias de falsificação de resultados que liquidaram uma carreira brilhante, Schoen conseguiu publicar 45 papers, marca que ainda não deve ter sido atingida pelos nossos colegas brasileiros… Situações dessa natureza, envolvendo formas diferentes de misconduct, colocam em xeque a comunidade científica, que costuma demorar para reagir, mas que foi desafiada a identificar erros e propor formas de controle e de conduta.

(uma versão desse texto foi publicada no Jornal da USP, na edição de 8 de dezembro de 2009)

*Sílvio R. A. Salinas é físico, professor da USP e membro da Academia Brasileira de Ciências.

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