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quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Em sua primeira entrevista, Graziano diz que fome na África será prioridade da FAO

Por Marcel Gomes
De São Paulo

Apesar dos sinais de que a crise financeira internacional não dará trégua em 2012, o número de famintos no mundo, próximo a um bilhão, não sofrerá grande incremento. Uma das razões são os programas de transferência de renda em países da América Latina, que já beneficiam 120 milhões de pessoas e têm mitigado as turbulências econômicas. Na África, porém, o drama da fome pode piorar, sobretudo em sua área setentrional.

Por conta disso, José Graziano da Silva, novo diretor-geral da FAO, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação, promete priorizar o continente africano em seu início de mandato, que vai até 2015. “A FAO é necessária para os países mais pobres, que não têm capacidade de lidar com esses desafios por si mesmos”, disse o brasileiro, que concedeu sua primeira entrevista coletiva no cargo, nesta terça-feira (3), na sede da organização, em Roma.

Com a experiência de quem conduziu o escritório da FAO na América Latina por quase seis anos, Graziano quer testar na África um novo modelo de atuação da entidade, em que os programas regulares e os de emergência terão atuação integrada. Além disso, promete colocar seus técnicos para auxiliar os governos nacionais a captarem recursos adicionais de outras fontes, porque em muitos casos “eles sequer têm condições de ir aos doadores e apresentar projetos”.

Ao longo de 2012, o novo diretor-geral acredita que os preços das commodities agropecuárias continuarão voláteis, sobretudo porque os estoques mundiais permanecerão baixos. Além da crise financeira, que limita os investimentos para aumento de produção, ele explica que grandes produtores mundiais de cereais foram atingidos por inundações e outros desastres naturais, o que prejudica a atual colheita e desestimula a ampliação das áreas de plantio para o próximo período.

Outro projeto da FAO com foco na África será a criação de regras que permitam aos governos nacionais ao menos monitorarem o mercado de terras em seus países. Nos últimos anos, empresas estrangeiras têm comprado – ou mesmo grilado – largas extensões de terra no continente africano. Segundo Graziano, isso preocupa a FAO por três razões:

- muitos governos nacionais não exigem que haja registros sobre compra e venda de propriedades, o que não permite que eles tenham sequer estatísticas confiáveis sobre terras;

- empresas estrangeiras têm comprado áreas comunais de comunidades e tribos, gerando migração de grandes grupos para a periferia das cidades;

- as empresas compram terras como reserva de valor ou para produzirem commodities destinadas à exportação, o que não contribui para a segurança alimentar local.

A adoção pelos países de regras sobre a posse de terra será voluntária, uma vez que a FAO não tem poder para regular questões desse tipo internamente entre seus membros. “Será uma referência para aqueles que tenham vontade de se defender caso sintam-se ameaçados por esse processo”, explicou.

Consumo sustentável
Questionado por jornalistas, Graziano disse que manterá a FAO como uma organização voltada para a pesquisa e a assessoria técnica, mas sem tirar “os pés do campo”. Ele lembrou que um dos motes de sua campanha a diretor-geral, quando venceu um ex-ministro espanhol, em junho de 2011, diz respeito ao incentivo ao consumo sustentável. “Precisamos mudar não apenas o padrão de produção, que é mais visível ao impactar sobre o meio ambiente, mas também o padrão de consumo”, afirmou.

Na opinião dele, o problema do desperdício não seria exclusividade de poucos países e pode ser encontrado da colheita ao consumidor final. Para exemplificar a questão, lembrou-se de sua passagem pelo Chile, onde fica o escritório regional da FAO para a América Latina. “Vocês sabem que é um hábito do brasileiro comer feijoada aos sábados, junto com caipirinha”, disse aos jornalistas.

“Mas no Chile não havia todos os ingredientes disponíveis, como o caso da couve. A verdura que mais era parecida eram as folhas da couve-flor. Eu ia ao varejão cedo e pedia essas folhas, até um dia em que a senhora ficou com pena de mim e me presenteou com uma couve-flor inteira”, recordou o brasileiro, afirmando que as folhas da couve-flor costumam ser descartadas, mas podem representar ¾ do produto. Valorizar produtos locais, aliás, é uma das soluções propostas por Graziano para mitigar os efeitos da volatilidade das commodities.

Durante a entrevista, o diretor-geral também falou sobre a pressão dos agrocombustíveis sobre o preço dos alimentos. Para ele, esse efeito será menor em 2012, a ponto de os agrocombustíveis “deixarem de ser o vilão da história”. Ele justificou essa versão apontando a queda de subsídios ao etanol nos Estados Unidos e o atraso na adoção de metas de uso do produto na Europa, o que reduz a demanda por matéria-prima.

No entanto, Graziano defendeu que é preciso aumentar os estoques de milho no mundo – segundo ele, um item estratégico como o petróleo. “É um insumo básico que afeta preços de carnes, lácteos e de muitos alimentos processados”, explicou. Nos Estados Unidos, por exemplo, o milho é usado na fabricação de etanol. No final de janeiro, o diretor-geral participará no Fórum Social Temático de Porto Alegre, quando espera dar impulso à sua nova política para a FAO, que prevê maior abertura à entidades da sociedade civil, como ONGs e movimentos sociais.

fonte: Carta Maior

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