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terça-feira, 26 de abril de 2011

Energia nuclear: controvérsias e diálogo

Por Sílvio R. A. Salinas
De São Paulo

Alguns dias depois do desastre de Fukushima, houve um debate aqui na USP, programado para o lançamento de um livro – Energia Nuclear: do anátema ao diálogo, editado pelo Senac de São Paulo – organizado pelo meu colega economista José Eli da Veiga, que é um texto particularmente recomendável nas atuais circunstâncias. A geração de energia elétrica a partir da fissão nuclear, que ainda pesa muito pouco aqui no Brasil, mas que compõe parte substancial da matriz energética no hemisfério norte, sempre veio acompanhada de controvérsias sobre a segurança dos reatores, o gerencialmente dos detritos radioativos, e possíveis conexões com a produção de armamentos.

O desastre de Fukushima reascende essas controvérsias, que se colocam nesse livro, na perspectiva de um país como o Brasil, com ampla capacidade hidroelétrica, mas com um programa nuclear envolvendo duas usinas em funcionamento, uma usina em construção, quatro usinas em fase de planejamento, além de reservas significativas de urânio natural e de relatos de sucesso nos esforços para o seu enriquecimento.

O livro de José Eli se inicia com uma boa introdução, explicando os fenômenos básicos da desintegração nuclear, as diferenças entre fissão e fusão, por exemplo, que em geral são desconhecidos pelo público mais amplo. Além disso, ele explica porque certos ambientalistas – James Lovelock, criador da “teoria Gaia” sobre o funcionamento do organismo Terra é o mais conhecido – mudaram de opinião, passando a defender a construção de usinas nucleares, com a progressiva substituição das termoelétricas movidas a carvão, que são contribuintes de peso para os gases do “efeito estufa”. Os argumentos a favor e contra a utilização da energia nuclear – envolvendo questões de segurança na operação das usinas e de armazenamento dos detritos – são mencionados nessa introdução, com uma boa lista de referências para o “estado da arte”.

Os capítulos seguintes foram escritos por “especialistas da área”, com argumentos a favor e contrários à utilização da energia nuclear. Leonam dos Santos Guimarães, engenheiro pela USP e doutor em energia nuclear, oficial reformado da Marinha e atual assistente do Presidente da Eletronuclear, participou do debate de lançamento e escreveu o “capítulo favorável” em colaboração com João Roberto Loureiro de Matos. O nosso colega José Goldemberg, que também participou do debate de lançamento, escreveu o “capítulo contrário”, em colaboração com Oswaldo dos Santos Lucon, apresentando uma visão crítica e muito cautelosa, em particular sobre o programa nuclear brasileiro.

Durante o debate no auditório lotado da Faculdade de Economia, notei a falta dos meus colegas físicos, que “ainda dirigem a CNEN”, mas que estão se ausentando desse espaço, preenchido agora por engenheiros e economistas (que nos substituem para explicar as diferenças entre fissão e fusão). Sugiro aos colegas que leiam o texto organizado pelo José Eli, procurem se informar e refletir sobre a “questão nuclear”. Há uma enorme sensação de que o debate sobre o “plano energético brasileiro”, incluindo a retomada de Angra III e a construção de quatro novas usinas nucleares (duas no nordeste, com locais que já estariam praticamente definidos), passa por círculos restritos, pelos interessados mais diretos, sem maiores discussões no próprio Congresso Nacional. José Eli diz que o seu livro é uma contribuição para o debate necessário, que o planejamento energético brasileiro não tem sido transparente e nem democrático.

Dentro de mais uns trinta ou cinquenta anos não vai haver energia que chegue se nós fizermos uma extrapolação (linear) do consumo nos países do hemisfério norte. Mas será que essa extrapolação é razoável? Depois dos acidentes de Chernobil e Three Mile Island, houve uma espécie de moratória nuclear, mas a indústria nuclear teria aprendido com os erros, e estaria agora ocorrendo uma retomada dos programas nucleares, com reatores muito mais seguros. Leonam Guimarães é um engenheiro que se expressa de maneira segura e transmite confiança: “para suprir a demanda para a produção de eletricidade na “base de carga”, sem energia nuclear, o mundo teria que depender quase inteiramente dos combustíveis fósseis, especialmente de carvão mineral”; a energia nuclear ofereceria a única tecnologia confiável, disponível para energizar uma economia próspera sem impacto ambiental destrutivo. Será que é isso mesmo? O entusiasmo de Leonam Guimarães leva à conclusão de que há “um novo realismo, que reconhece a energia nuclear e a sua capacidade de fornecer energia limpa, segura, confiável e em escala maciça”, terminando por prever que um desastre ambiental nesse século somente será evitado multiplicando por vinte as atuais quatrocentas usinas nucleares em funcionamento.
Goldemberg reconhece os problemas na “matriz elétrica” mundial, que reflete o consumo no hemisfério norte, com uma contribuição pequena da hidroeletricidade (da ordem de 15%) e uma enorme contribuição do carvão e do xisto (da ordem de 40%). Reconhece também a preocupação dos ambientalistas com os riscos do consumo excessivo de carvão, mas é crítico das “extrapolações simplistas” e continua apontando a gravidade dos riscos da energia nuclear, incluindo envelhecimento e custo dos reatores, e os problemas não equacionados do armazenamento dos detritos radioativos. Nesse sentido vale a pena registrar a posição da American Physical Society (APS), que reconhece a necessidade da utilização da energia nuclear como “instrumento para substituir (na matriz energética americana) a contribuição dos combustíveis fósseis e assegurar a auto-suficiência energética do país”. Mas a própria APS recomenda esforços em três direções: no desenvolvimento de uma nova geração de reatores, mais limpos e mais seguros, no tratamento dos dejetos radioativos, problema que não parece ter sido resolvido, e na discussão com o público sobre vantagens e limitações da energia nuclear (como está faltando aqui no Brasil). No mesmo documento, a APS também expressa “profunda preocupação” com o progresso inadequado no tratamento dessas questões (nos USA, é claro). A situação me parece bem mais preocupante no nosso país, em que a própria CNEN, em desacordo com recomendações internacionais, ao mesmo tempo executa e fiscaliza o programa nuclear, com uma diretoria aparentemente demissionária, sob alegações variadas em relação ao licenciamento completo de Angra II.

No caso brasileiro, há amplo reconhecimento de que a hidroeletricidade continuará sendo absolutamente dominante, mantendo uma situação bem mais confortável do que nos países do hemisfério norte. Além das obras gigantescas, ainda há muito espaço para a construção de barragens pequenas, em locais apropriados, com menor dano ao meio ambiente. O próprio “Plano Nacional de Energia - 2030”, que prevê a conclusão de Angra III e a construção de mais quatro usinas nucleares, limita em 10% a contribuição da energia nuclear na matriz elétrica brasileira, da mesma ordem de grandeza da futura contribuição da energia eólica. Questões mais delicadas, como o depósito de resíduos, planos de segurança em Angra, ou controle e fiscalização independentes, permanecem numa zona nebulosa. Ao fim e ao cabo, talvez o nosso enorme potencial hidroelétrico, suplementado pela utilização da energia eólica ou da biomassa, acabem nos poupando da preocupação nuclear.
 
*Sílvio R. A. Salinas é físico, professor da USP e membro da Academia Brasileira de Ciências.
Observações e referências:

Há pelo menos dois textos recentes dos meus colegas físicos que também cumprem esse papel tão importante de discutir junto ao público o significado, as vantagens e os problemas da energia nuclear: (1) “Energia nuclear: com fissões e com fusões”, de Diógenes Galetti e Celso Luiz Lima, publicado na Coleção Paradidáticos da Editora da UNESP em 2010; (2) “Radiação – efeitos, riscos e benefícios”, texto introdutório de Emico Okuno, publicado pela Editora Harbra em 1998.

Publicado em 22/04/2011 no Boletim da Sociedade Brasileira de Física

Um comentário:

  1. oi silvio

    desde fukushima, achei importante levantarmos as discussoes acerca do tema numa forma razoável e embasada em evidencias.

    na epoca, escrevi um artigo aqui sobre o tema, q deu boas discussoes: http://radiacaodefundo.haaan.com/2011/03/13/sobre-a-histeria-nuclear/

    acho q sao adendos q podem acrescentar à discussao como um todo.
    abraço

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