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quarta-feira, 16 de março de 2011

Japão 2011 - De Angra a Fukushima

Por Bruno Mota*
Do Rio de Janeiro
Via blog Milliways Lounge

Os prédios contendo dois reatores da Usina Termoelétrica Nuclear de Fukushima, no Japão, explodiram; uma quantidade (e qualidade) não especificada de 'radiação' escapou, e os técnicos no local parecem incapazes de impedir o aquecimento descontrolado dos reatores. Por mais terriveis que sejam o terremoto e tsunami concomitante que atingiram o Japão, com um numero de mortos confirmados muito maior do que a mais pessimista estimativa plausível para a quantidade de eventuais vítimas fatais por radiação, é o espectro da catastrofe nuclear, mesmo que vagamente definida, que assusta.

Primeiro, uma digressão técnica: Os isótopos de urânio e plutonio usados como combustíveis nucleares tem uma propriedade inusitada: Ao serem atingidos por um neutron, o seus núcleos se partem em dois isótopos instáveis, que vão se subdividindo em uma cascata de fissões expontâneas. O resultado final é uma quantidade prodigiosa de energia liberada, alguns resíduos radioativos menos instáveis (e.g. Césio-137), e um certo número de neutrons livres, que podem por sua vez fissionar núcleos vizinhos. Tal reação em cadeia é o segredo da fissão nuclear. Se a fissão de um núcleo gerar em média mais do que uma fissão de núcleos vizinhos, o numero de reações vai aumentar a cada passo, até o combustivel se exaurir e o terreno em volta adquirir uma aparência vitrificada suavemente fosforecente. Mas se em média exatamente um neutron gerado por cada fissão ocasionar uma nova fissão, temos uma reação (dita crítica) pelo menos momentaneamente estável. Uma reação que gostaríamos que fosse controlável, e passível de usos menos explosivos.

Um reator nuclear é, por definição, um local onde uma reação nuclear controlada acontece. E as principais variáveis a serem controladas são duas: A velocidade com que a reação ocorre, e a temperatura do nucleo do reator. A velocidade de reação, que determina a potência sendo gerada, é regulada pelo controle dos neutrons, através da variável disposição de materias que ora absorvem, ora desaceleram, ora refletem estes últimos. A energia térmica assim gerada é dissipada por meio da troca de calor mediada por fluidos em uma série de ciclos fechados (a natureza, quantidade e disposição destes ciclos em grande parte definem o modelo de reator em questão). Se a reação em cadeia fugir do controle, ou o ciclo de trocas térmicas não funcionar a contento, a temperatura do núcleo do reator sobe, até que este último sofra um derretimento, total ou parcial, com resultados total ou parcialmente catastróficos.

Imagens da explosão de um dos reatores na usina de Fukushima no Japão.
Uma lição a ser tomada disto tudo é que um reator nuclear precisa gastar energia para funcionar, bombeando fluidos e movendo elementos de controle de neutrons. Obviamente, em condições normais, mais energia é gerada do que consumida. Mas, crucialmente, isto implica também que um gerador precisa de uma fonte externa de energia para ser desligado.

Normalmente os mecanismos de controle de um reator nuclear são conectados diretamente à rede elétrica externa. Se a rede cai, por medida de segurança um sistema de backup de geradores a diesel é acionado, e o reator é desativado automaticamente (mas não instantaneamente).

Aparentemente, após o terremoto, o desligamento automático de emergência de todos os reatores de Fukushima ocorreu sem transtornos. Isto significa que a reação em cadeia de fissão não está mais ocorrendo (i.e., sem síndrome da China ou, mais propriamente, do Brasil, já que a antípoda de lá é por aqui); mas alguns isótopos instáveis, produzidos anteriormente pela reação em cadeia, continuam por lá, produzindo uma quantidade ainda significativa de calor com seu decaimento. Imediatamente os geradores a diesel foram ligados, e estavam funcionando normalmente, permitindo que o ciclo de água não pressurizada resfriasse o núcleo. Foi então que o tsunami chegou.

O tsunami destruiu os geradores a diesel. Por algumas horas um conjunto de baterias, o backup do backup, manteve as bombas de resfriamento funcionando. Mas quando a carga acabou o sistema de bombeamento parou de trabalhar; a temperatura começou a subir, fora de controle. No reator #1, algumas das barras de combustível começaram a se desfazer, gerando entre outras coisas hidrogênio, que foi liberado juntamente com vapor d'água para aliviar a pressão interna, e explodiu em contato com o oxigênio no interior da estrutura de contenção externa. Sem mais alternativas, os japoneses se viram forçados a bombear agua do mar para o interior do reator, o que finalmente conseguiu resfriar o núcleo. Algo parecido parece estar ocorrendo com o reator #3.

A boa noticia é que o projeto dos reatores em questão é intrinsecamente mais seguro que o malfadado reator # 4 de Chernobyl. Os sarcófagos de contenção dos núcleos sobreviveram intactos ao terremoto, ao tsunami e às explosões subsequentes (feito de engenharia por si só bastante impressionante, tudo o que falta agora é um Godzilla em fúria), e é improvável que uma quantidade significativa de radioatividade escape para o ambiente. A má noticia é que a situação ainda não está totalmente controlada, e uma pequena quantidade de resíduos radioativos escapou junto com o gás ventilado, o que implica que a integridade física de pelo menos uma das barras de combustível foi comprometida. E a noticia bizarra é que eu já testemunhei pessoalmente o desligamento emergencial de um reator nuclear a partir da sala de controle. E, pelo menos em termos dramáticos (i.e., se estivássemos em um filme) ou supersticiosos (i.e., se não acreditássemos em coincidencias), a causa fui eu.

Exatamente 12 anos antes do terremoto, no dia 11 de março de 1999, eu, estudante de graduação de física, estava no complexo nuclear de Angra dos Reis. Era uma visita guiada bastante detalhada, na qual conheci cada canto de Angra I e Angra II (então em contrução). Para o grande finale, fui levado para a sala de controle de Angra I. Me vi em meio a incontáveis indicadores analogicos, dials e botões, faixas indicadoras no chão exclusivas para operadores de plantão, e funcionários cujo trabalho era ficar sentado monitorando seus intrumentos, exceto no caso de emergencias. Um simpático engenheiro, o encarregado do turno se não me engano, me explicava pacientemente o que fazia cada painel (eu tinha muitas perguntas). Finalmente, chegamos em frente ao painel referente ao status do gerador a diesel de backup. "Para que uma usina nuclear precisa de um gerador a diesel?" - perguntei, inocentemente. Ele me deu exatamente a mesma explicação que reproduzo mais acima no presente texto. Naturalmente, a minha próxima pergunta foi: "Mas este gerador já teve que entrar em funcionamento alguma vez?". Instantes após eu formular a pergunta ("algumas vezes...", ele começou a responder), um klaxon, daqueles que se vêem em filmes de submarino, começou a soar. Luzes vermelhas se acenderam. Os contemplativos plantonistas saltaram de suas cadeiras e puseram em prática seus anos de treinamento. Os leds do painel de controle do backup elétrico piscavam furiosamente, e ao fundo eu podia ouvir o ruido inconfundível de um gerador a diesel entrando em funcionamento.

Um apagão, geograficamente restrito de inicio, derrubara a rede elétrica do Rio de Janeiro. O sistema de emergência havia sido acionado, e Angra I estava sendo desligada.

Visão da Usina Termoelétrica Nuclear Angra I situada no município de Angra dos Reis/RJ.
Fiquei na sala de controle por mais algum tempo, esquecido em meio ao caos organizado. Resgatado por meu guia, fui embora pouco depois, e não voltei desde então. Sei, porém, que adquiri uma certa fama. O meu irmão, fazendo um estágio por lá no ano seguinte, foi saudado ao chegar como o 'irmão daquele cara que parou a usina'. Sei que, objetivamente, eu não tive nada a ver com o incidente; mas a irracional sensação de que a lei de Murphy operava através de mim por meios sutis é inescapável. No mesmo dia, um apagão ainda maior deixou as escuras boa parte do territorio nacional. A explicação oficial é que um raio causou uma reação em cadeia, derrubando uma rede já operando no seu limite. Mas eu estava lá, em Angra. E sei que, se foi esta a causa, os raios cairam em dupla. Parece implausível, embora em visto do ocorrido eu não me sinta muito a vontade para falar de implausibilidades. Só posso dizer que, em minha defesa, eu não estava no Japão quando ocorreu o terremoto. Só perto de sua antípoda.

PS: A cobertura na imprensa está sendo um tanto histérica. O NY Times está se mostrando melhor que a média, e o seu gráfico interativo sobre o incidente é bastante informativo. Para uma discussão interessante entre quem parece entender melhor do assunto (i.e., ex-tripulantes de submarinos nucleares), veja aqui. Uma tentativa de acalmar os animos pode ser encontrada aqui, e noticias em geral com um viés nuclear, aqui.

*Bruno Mota é físico, assistente de pesquisa no CCS da UFRJ e edita o blog Milliways Lounge.

2 comentários:

  1. Alexandre Ribeiro de Faria16 de março de 2011 às 17:03

    Prezado Bruno Mota,

    Sem conhecer a fundo o processo que envolve a construção e proteção de um reator nuclear, gostaria de perguntar:
    Por que não se utiliza o Nitrogênio Líquido para resfriar a água que envolve o combustivel nuclear de um reator, nos casos de uma emergência?
    Para fazer com que a temperatura do nucleo do reator diminuisse de forma rápida.

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  2. Olha, tb não sou engenheiro nuclear, mas me parece que

    1) O calor absorvido por nitrogenio liquido até evaporar é menor que o absorvido pela agua até evaporar
    2) Existem bombas no local para bombear agua; provavelmente não poderiam ser adaptadas para bombear um liquido criogênico
    3) É preciso muitas piscinas olimpicas de agua para resfriar o reator. Provavelmente não há tanto nit. liq. disponivel.
    4) a agua é perfeitamente capaz de resfriar os reatores; o problema é que, devido a pressao interna, ou a varios outros problemas, os japoneses não estao sendo capazes de bombear o volume suficiente.

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