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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Matemática com sonho e fantasia




Por Débora Menezes Alcântara*
De Salvador

“Cultivar a ciência pela utilidade prática, imediata, é desvirtuar a alma da própria ciência!", disse Beremiz para o califa e seus convidados. E continuou: “Por ter alto valor no desenvolvimento da inteligência e do raciocínio, é a Matemática um dos caminhos mais seguros por onde podemos levar o homem a sentir o poder do pensamento, a mágica do espírito. Sem o sonho e a fantasia a ciência se abastarda".

As palavras de Beremiz Samir, um calculista persa que passa por diversas aventuras em Bagdá em pleno século XIII, são parte do fabuloso engenho literário de Malba Tahan: “O homem que calculava”, publicado em 1937. Malba Tahan era o heterônimo do professor de Matemática, Júlio César de Mello e Souza, um brasileiro nascido no Rio de Janeiro, em 1895. Ele é genuinamente o maior escritor de contos árabes e divulgador da Matemática no Brasil. Através dessa artimanha peculiar, ele evoca em suas mais de 100 obras uma mágica interação entre a imaginação e a ciência para a construção do conhecimento.

“Quantos séculos terão dormido no sangue deste legítimo descendente de portugueses os hormônios de sua longínqua procedência semita?”, indagara o jornalista e escritor Humberto de Campos, antes mesmo da publicação de o Homem que Calculava, a mais célebre obra tahaniana.

“Por que só agora, ao fim de tantas gerações brasileiras do mesmo ramo lusitano, surgiu, para a atividade da inteligência, este mouro que os árabes deixaram na Península Ibérica, e que de repente acorda como a princesa adormecida no bosque, ou como aquele monge que escutava o pássaro encantado, com as mesmas tendências de espírito, como se tivesse chegado ontem de Basra ou Bagdá?”, emendara Campos, referindo-se ao imaginário marcante nas obras do professor Júlio, em que sheiks, escribas, califas, cenários do deserto, camelos, jogos, reinos e diversos outros elementos e personagens do mundo árabe se misturam em intrigas e aventuras e que pintam nas entrelinhas um cunho da moral islâmica.

Assim, Campos define categoricamente Malba Tahan: “a esse árabe do Brasil estava destinada a realização de um dos maiores empreendimentos das literaturas orientais porventura tentados fora do Oriente”.

Em seu livro “Didática da Matemática”, publicado na década de 1950, ele já recomendava o jogo como situação de aprendizagem, assim como a montagem do Laboratório de Ensino da Matemática, fornecendo mais de 70 sugestões de materiais didáticos, recreações na sala de aula e a narração de histórias. De acordo com o professor da Universidade Federal de Campinas (Unicamp), Sérgio Lorenzato, em 1958, Tahan propunha, no Ensino Fundamental, que se introduzissem noções de probabilidade, topologia, estatística e cálculo estimativo, além do uso da máquina de calcular. Já em 1989, 30 anos depois, nos EUA, essas recomendações foram lançadas oficialmente. “No Brasil, somente oito anos mais tarde, os nossos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) as contemplaram”, informa. Ele considera que Malba Tahan distingue-se, em suas concepções, por sua atualidade. “Por isso, nele entrevemos o arauto, o portador de uma nova mensagem para a Educação Matemática”.

De fato. O Malba Tahan quebrou os cristais que envolviam os “matemáticos puros” e resgatou em suas histórias e didática ousada o repertório de referências do Oriente, injustamente ignorado pela ciência ocidental. Através da fantasia e da literatura, Malba Tahan mostrou a muitas gerações como é possível ler o mundo matematicamente.

Sem dúvida, após o contato com os personagens e desafios matemáticos de Tahan, muitos deixaram de brigar com a matemática. Nas mãos desse ilustre professor, deixara, esta, de ser a coisa chata e amedrontadora, para se tornar um universo intrigante e sedutor do conhecimento.

"O homem só vale pelo que sabe. Saber é poder. Os sábios educam pelo exemplo e nada há que avassale o espírito humano mais suave e profundamente do que o exemplo", disse Beremiz ao califa Al-Motacém.

*Débora Menezes Alcântara é jornalista e editora do fóton Blog.

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